Ninguém nunca jamais foi unânime com ninguém

Esta dura e instigante realidade acompanha toda a história humana e jamais esteve sequer aproximada de qualquer solução a curto, médio ou longo prazos. Mas o mínimo que a Humanidade vê é que nem Cristo agradou a todos.

Cegos voluntáriosEste é o tipo do artigo cujo argumento poderia ser transmitido tanto por uma Escola Teológica quanto por uma Agência de Casamento. Porque tanto teólogos como cônjuges sabem o quanto é difícil encontrar pontos em comum nas crenças de almas livres, e por isso o aparente problema pode ser o preço que Deus pagou, com alegria, pela graça inaudita de contemplar, ao seu lado, criaturas livres. E ele traz um mistério inquietante: parece que até o próprio Deus, quando autoconvocado para missões “individuais” e não trinitárias, demonstrou em sua própria trajetória que nenhuma mente livre pensa 100% idêntico a outra mente, e assim só se pode deduzir que a existência de pontos não idênticos é uma bênção, e não uma maldição. Este é, pelo menos, o único modo de perceber a verdade e não se escandalizar com ela.

Ninguém nunca conseguiu acreditar em alguma coisa, seja objetiva ou subjetiva, em cuja integralidade não houvesse o mínimo ponto de desacordo, e é isto o que torna o casamento tão difícil, e também toda a convivência humana, e tudo o mais. E o que o vulgo ou o homem mediano vê desta realidade é apenas o que se entende no adágio comum que diz que “nem Jesus Cristo conseguiu agradar a todos”. Todavia, para nosso espanto, a verdade é que além disso, além de não ter agradado a todos (como diz a sabedoria popular), parece que até Jesus Cristo encontrou um ponto de desacordo com o seu próprio Pai, quando confessou: “passa de mim este cálice, mas faça-se antes a tua vontade e não a minha”. Sem contar que chegou a acreditar que seu Pai O havia abandonado! Isto é de calar e de cortar o coração de qualquer um, sem dúvida, mas a rigor comporta uma bênção de consolo extraordinária, para quem tem olhos e ouvidos sadios.

reuniao1Ora; todos nós ficamos chocados, tristes e às vezes até entramos em depressão, quando recebemos na cara a comprovação de que alguém não concorda conosco, sobretudo quando por “alguém” queremos dizer muita gente, isto é, quando nossa opinião entra em conflito com a de muita gente ou até de todos, e ficamos assim como que paralisados, arrasados. Pior, na maioria das vezes, são opiniões claras sobre fatos irretorquíveis; ou observações válidas sobre realidades objetivas; ou outras afirmações igualmente relevantes, mas para as quais os ouvidos que nos ouvem conseguem encontrar, lá “nos cafundó do Judas”, um ponto de observação diferente (se é que é isto o que acontece), pelo qual a sua mente acaba encontrando um outro ângulo, cuja visão termina por gerar outra opinião sobre o mesmo assunto, mesmo quando se trata de uma verificação palpável de um objeto concreto!

É claro que, em se tratando da convivência humana, e abstraídas outras hipóteses mais frequentes, não podemos deixar de reconhecer que, o cafundó do Judas pode também ser um ponto minúsculo no interior do cérebro do ouvinte, no qual alguma mínima imperfeição na fisiologia cerebral – que todos nós podemos ter – pode ter gerado aquele ângulo para a visão consciente do interlocutor, e, por causa da insignificante falha, o cérebro manda para a língua uma opinião diferente da nossa! Sim. Isto é possível, e até bem provável, dadas as inexoráveis e imperceptíveis falhas fisiológicas na rede neuronal de todos os cérebros nascidos a partir da Queda adâmica, e deve ser por isso que a Bíblia diz que “até um louco poderá consertar o seu caminho pela convivência com a Palavra de Deus”.

Ze_Ramalho_Sinais_180_div_Ora, mas até aqui tudo o que discutimos ainda se trata de embates entre cérebros humanos, sujeitos a falhas fisiológicas e defeitos morais, e por isso a ocorrência de conflitos de opinião pode ser considerada até certo ponto O NORMAL da Humanidade, o “normal” que Zé Ramalho disse que “a vigilância cuida dele!”. Todavia, o que dizer quando conflitos de opinião acontecem entre cérebros etéreos, inteligências superiores ou mentes transcendentais de anjos e querubins, que a Bíblia revela terem ocorrido desde os tempos imemoriais? E pior: o que dizer quando descobrimos que até no seio da Trindade, onde reina absoluta paz e harmonia, quando cada uma das pessoas de Deus se encontra em missão “individualizada”, ocorreu um ponto de aparente desacordo, quando o Filho de Deus, vestido da carne humana, foi forçado a dizer “não se faça a minha vontade, mas a tua”? Ou será que, devido às falhas de nosso cérebro, não estamos entendendo o episódio do Getsêmani e a cena da crucificação? Teriam os autores canônicos incluído uma cena que não houve, ou os cérebros deles também falharam na interpretação do lamento de Jesus? Ou seríamos tão medíocres que não entendemos nem mesmo o desespero de quem sofria duplamente com o dia presente e o sofrimento do dia seguinte?

Com efeito, somos levados a afirmar que ambas as hipóteses são válidas, e a julgar pela exatidão da Bíblia, o próprio Deus não é daqueles que descartam hipóteses, deixando-as vivas e insinuantes onde quer que haja liberdade. Ser livre, afinal, poderia ser diferente? O que é a liberdade, senão a ampla liberdade de opinar, mesmo que discordando do próprio Deus?

Descobrindo em Deus esta estrambólica mas sublime qualidade, deve estar aqui a grande lição de toda a Criação do Senhor, a saber, que o grande trunfo e a grande Graça de uma criação livre deve ser o próprio fato da multiplicidade inesgotável de informações válidas, muitas das quais não receberiam de nós um único centavo de pagamento, mostrando assim que Deus é tendente a valorizar as coisas, e nós somos tendentes a criticar e descartar, sobretudo se for uma opinião que pensamos ser inventada por outras pessoas (quando ela também pode estar em nós, ou pode ter sido invenção nossa numa época tão longínqua que já esquecemos que aquilo era exatamente a nossa opinião!). Não é à-toa que a sabedoria popular diz que “se conselho fosse bom ninguém dava”.

Enfim, com este quadro todo na mente, algumas conclusões são bem oportunas agora, e é assim que conseguimos externá-las neste exato instante:

Caucasian business man with thumb down

Quem nunca deu um “NÃO” a qualquer uma de todas as suas opiniões?

1a) Ninguém nunca jamais foi unânime com ninguém! Que ninguém pense que um dia já conseguiu o consenso geral de alguma opinião, e apenas foi dormir na ilusão de que o(s) outro(s) estava(m) de acordo, quando na verdade pode ter ocorrido apenas um ruído na comunicação (até um ruído simples, e os ouvidos de ambos falharam) ou um palpite divergente omitido na conversa, geralmente por questão de amizade ou respeito ponderado sobre a posição ou autoridade do pregador. Isto é muito importante e particularmente endereçado a líderes religiosos, pois os tais geralmente são aquele tipo de comunicador que se ilude com a aparente unanimidade reinante em sua igreja, e para mantê-la à força chegam a pagar regiamente para calar opiniões diferentes de outros líderes de sua própria igreja, reforçando a ilusão de que “todos os líderes pensam iguais”. O leitor pode apostar que este é um dos mais consolidados enganos no ambiente religioso de nosso dias. Isto também é muito importante para o relacionamento ‘marido e mulher’, ou mesmo para namorados e namoradas: aprendam que cada um tem uma visão diferente e jamais esperem que a opinião do outro combine em qualquer ponto com a sua: isto é a única forma de garantir o mínimo de durabilidade às relações, sejam elas eclesiais ou amorosas. E é por isso que chamamos o matrimônio cristão de “Casamento a Três”, pois um imbróglio assim jamais poderia dar certo se se casassem somente o homem e a mulher: é preciso também casar COM DEUS, para que o casal forme uma trindade com o Senhor.

2a) Se Deus nos criou com o Livre-arbítrio, e Ele é onisciente e capaz de antever tudo, então podemos ficar tranquilos com uma coisa: “Foi Ele quem quis assim” (leia o que diz Paulo em Romanos 9,15-19 e pasme). E se agora sabemos que Ele valoriza todas as opiniões do universo, mesmo que aparentemente tolas para nós, quem somos nós para desgostar do ambiente barulhento de uma feira livre, dentro de nosso lar? Ora, foi o próprio Jesus quem fez permanecerem juntos o trigo e o joio, justamente porque as opiniões do joio podem mudar o trigo e vice-versa! É o livre jogo da conquista divina, que quer garantir, custe o que custar, o resgate das almas perdidas por causa de opiniões erradas diante de Deus, as quais tanto podem ser proferidas por santos quanto por criminosos e outros tipos insuportáveis. Você se lembra que por conta de uma opinião errada, Pedro foi expulso como satanás por Jesus? Lembra o que disse São Mateus sobre as nossas opiniões? Que elas até têm relação direta com a nossa salvação? (Releia Mateus 12,31-37)…

Finalmente, com esta abertura de visão para a realidade do mundo, agora que sabemos que ninguém pensa igual a ninguém em nada (nem mesmo sobre a cor dos olhos dos outros), podemos estar inaugurando um tempo em que a paz finalmente esteja mais próxima de nossas almas, quando descansarmos nosso coração e já até esperarmos a opinião divergente, como quer o Criador. Afinal de contas, quem diabos nos incutiu este desejo irracional de colher opiniões idênticas as nossas, quando muitas vezes nós demoramos a acreditar em nós mesmos? Sem dúvida foi mesmo o diabo, e é por isso que Ele vive irritado com o próprio inferno, pois é ele quem queria um ambiente onde todo mundo pensasse como ele, e agora sabe que as opiniões no inferno só são parecidas porque seus comparsas temem contrariá-lo! Ora; a conclusão é que o único ambiente saudável é o Paraíso, justamente porque ali nenhuma opinião é igual! E mais espantoso ainda é saber que, embora ali ninguém pense igual, todos amam a Deus e ninguém discorda de que Ele tem a opinião mais perfeita. Ah, quem dera fôssemos assim, o Paraíso estaria sorrindo nas janelas de nossa alma.

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