Sola Scriptura: O absurdo dos absurdos

Após irromper a Reforma, cinco lemas de identificação do “novo cristianismo” grassavam no mundo, e no meio deles, uma aberração doutrinária impunha a ignorância total como sinônimo de segurança.

Os cinco lemas ficaram conhecidos como “Cinco Solas” (Sola Fide, Sola Gratia, Sola Scriptura, Solo Christus e Soli Deo Gloria) e nunca mais abandonaram a sua aderência e influência no meio da cristandade pós-Reforma, e por obra e graça deles, o Cristianismo segue cada vez mais fragmentado e agora a assistir, chocado, à eclosão da Teologia da Prosperidade no chamado “neo-evangelicalismo”. Todavia, esta profusão de seitas e igrejas-empresas nem chega a ser o maior prejuízo da Reforma, conquanto estejam todas as almas por ela enganadas a mercê de uma crença frágil e sem qualquer segurança para enfrentar “doutrinas de demônios”, frequentes e insidiosas nestes tempos loucos.

Isto compõe o absurdo que foi o engano desastroso de Lutero e seus seguidores de aventar a hipótese de que a Bíblia Sagrada (sobretudo o Novo Testamento, livro-base de todos os cristãos), pudesse chegar de paraquedas e entrar nas casas e nos corações humanos sem nenhuma ajuda exterior, como se o mero fato de haver uma comunicação fosse tão simplório como respirar com os pulmões sadios, e todos a respirassem sem problema algum.

Porquanto o erro já começa na ignorância para com a Teoria Geral da Comunicação, a qual ensina que entre quaisquer emissores/receptores, inúmeros ruídos na comunicação ou falhas nos próprios comunicadores (auditivas, mentais, circunstanciais, etc.) resultariam em desinformação ou contrainformação, impedindo o objetivo exclusivo de promover entendimento entre as partes. Como todo o planeta e o próprio ato de comunicar alguma coisa dentro de uma atmosfera densa comporta bloqueios audíveis e inaudíveis poderosos, a primeira coisa que os cristãos deveriam ter feito (e o fizeram, lá por volta do Século III, muitos séculos antes da Reforma) era se garantir de facilitar a compreensão da mensagem bíblica, usando para isso de todos os meios possíveis para “traduzir” –  em sentido amplo – a vontade de Deus ao povo, sob duas razões justíssimas:

(1a) Grande parte do povo sempre foi feita da massa ignorante ou cuja vida de prazeres (ou de luta pela sobrevivência) frequentemente distrai toda a atenção e impede que haja tempo para estudar qualquer coisa. Eis porque distinguir clero de laicato sempre foi um recurso salvífico, e não uma imposição sectarista.

(2a) Grande parte da caridade salvífica do plano de Deus estava posta justamente no trabalho de levar a salvação ao povão ignorante, e nenhuma obra de caridade poderia ser mais importante do que comunicar a vontade de Deus de modo claro e convincente. Isto impõe a lógica óbvia: se a maioria é ignorante e alguns aprenderam alguma coisa (como os apóstolos de Jesus), alguém estava pois sendo chamado a repassar aos outros aquilo que aprendeu com Deus.

Tudo estava, portanto, programado para a situação de existência de almas-alunas e almas-mestras, e esta certamente era a vontade de Deus desde que os planos de salvação foram revistos após a Queda de Adão e Eva. Aliás, Deus nunca refaz um cálculo sem adicionar uma equação derivada, da qual não se possa dispor de mais uma ferramenta de alcance do resultado almejado. Por isso toda a tragédia da Queda resultou numa avalancha de caminhos de salvação amparados pela misericórdia e pela onipotência, e as almas humanas ficaram, por incrível que pareça à primeira vista, muito mais “bem cuidadas” do que estavam na aparente solidão do Éden. É como tocas de ratos em espaço urbano: há sempre muito mais saídas do que entradas.

Com efeito, a proposição do Sola Scriptura afronta diretamente a lógica cristalina do Plano de Deus, já na origem do ato de comunicação em si, que Deus operou via Transposição, a qual constituía o único meio de reduzir todo aquele conhecimento ao nível humano e assim precisaria de todos os recursos possíveis para chegar ao objetivo de ser compreendida por aqueles que queria informar. Dentre os recursos possíveis, Deus viu a extrema UTILIDADE de fazer uns ajudarem aos outros (os que sabiam ajudarem aos que não sabiam) e assim PROPAGAR a mensagem salvífica para retirar todas as almas perdidas de sua perdição. E esta obra, diga-se de passagem, não deveria ser entregue a anjos, pois seres que nunca pecaram não teriam “testemunho de experiência” para convencer pecadores, assim como um ex-viciado ajuda mais a um viciado do que alguém que nunca usou droga.

Tendo que outorgar essa missão a homens e mulheres “sadios”, restava instruir a estes para saírem a campo e pregarem a Boa Nova, dando aos pecadores oportunidade de conhecerem a Vontade de Deus e aos pregadores a oportunidade de fazerem a caridade por excelência.

Mas então, quase 1.200 anos depois, surge um religioso cristão, “criado e educado” na Igreja fundada por Jesus e, num átimo confuso de embaçamento dos seus miolos, esquece ou premedita (prefiro pensar que foi só esquecimento mesmo, dada a falibilidade da memória humana) uma teologia na qual as Escrituras, mormente o intrincado Novo Testamento, seria entregue a torto e a direito à bulha das massas, como se entregar um notebook a um cão fosse resultar em algum e-mail erudito. Nasce aqui o Sola Scriptura, que imediatamente suscita a pergunta: o que aprenderia dali uma alma ignorante que fosse sozinha mergulhar nas mais de 1000 páginas da Bíblia?

Não há resposta aqui, uma vez que eles mesmos, os egressos da Reforma, se tornaram os principais pregadores das Escrituras! Foram eles que fizeram a Bíblia ser traduzida para o mundo todo (numa grande caridade, diga-se en passant) e a espalharam a bel prazer, incitando o povo a desdenhar e desmoralizar a pregação católica!. Estava, pois, ali, a prova a queima-roupa da incoerência intrínseca do Sola Scriptura, pois eles mesmos não deixavam a Escritura a sós! E, afinal, em seu erro estavam certos neste mister, pois a Bíblia deixada a sós não faria com que tantas multidões os seguissem, tal como o Manual do Escotismo não leva todos os jovens a se tornarem escoteiros e nem os escoteiros a aprenderem todo o seu conteúdo sem seu instrutor mais experiente. Isto é, afinal, uma consequência lógica de todos os conhecimentos, a saber: a exigência de que os mais antigos no aprendizado o repassem aos mais novos, e assim sucessivamente, numa grande cadeia lógica de caridade para com a Educação em sentido amplo.

Com o tempo, a obviedade da necessidade de ensinar aos outros aquilo em que acreditavam os levou ao mesmo erro ao qual se opuseram, assumindo eles uma interpretação particular que julgaram divina, da mesma forma como o Catolicismo julgou divina a sua interpretação, e com razão, já que ela era a mais próxima, no tempo e no sentido, da catequese apostólica, que nasceu com os apóstolos (PS: este fato também era aceito pelo próprio Lutero antes do absurdo da venda das indulgências ter ofendido a consciência cristã dos séculos anteriores: a rigor, não há nada anormal em errar, e até errar feio, como hoje o protestantismo erra adoidado, e assim Deus pode ter usado Lutero para fazer a Igreja rever seu erro). Logo, se a Igreja estava cometendo um erro crasso de abuso da autoridade outorgada por Deus para a condução do rebanho, o mais lógico era tentar até o fim uma conscientização a quatro paredes, com muita paciência e trabalho, para evitar que a Noiva de Cristo ficasse dividida e se fragmentasse em mil e uma denominações cristãs, confundindo mortalmente as almas (o exemplo de São Francisco é muito bem vindo aqui).

Inobstante, já que muitos leitores podem estar atualmente envolvidos com o lado reformado, o presente argumento não poderia ser posto sem um maior referencial bíblico, porque os filhos da Reforma, enquanto não seguirem cegamente seus pastores, julgam como única possibilidade de comunicação de Deus aquilo que estiver NA LETRA (quase sempre) das Escrituras, e quase nunca nas entrelinhas, embora eles, dependendo de seus interesses proselitistas, usam umas e outras para convencerem possíveis futuros adeptos.

Que diz a Bíblia sobre o absurdo do Sola Scriptura? A primeira coisa a ver agora é que o Sola Scriptura se levanta contra a própria Escritura, que propõe sempre o auxílio de terceiros na elucidação de seus ensinos e enigmas, e a própria convocação de Deus aos profetas é uma prova eloquente dessa realidade. Mas não olhemos aqui para o Velho Testamento, pois isto suscitará a surdez irada ou a ira surda de desprezo da razão, pois a atenção dos nossos interlocutores muda a 3 por 4, dependendo dos interesses deles.

O que diz o Novo Testamento? São tantas as passagens que não será possível enunciá-las aqui. Porém atentemos nas seguintes.

Certa vez Paulo disse a Timóteo, numa ocasião em que ficou um tempo longe de seu discípulo: “não se esqueça de trazer os livros”. E mais à frente disse: “até a minha chegada, aplica-te à leitura, à exortação e ao ensino”. Certa vez Pedro disse que nas Escrituras “há coisas difíceis de  entender, que os ignorantes deturpam, e que o amado irmão Paulo explica segundo a sabedoria que lhe foi dada”. Pedro também disse que “as Escrituras foram pregadas por homens santos inspirados por Deus”, que do Senhor receberam esta missão necessária para a sua boa interpretação. Enfim, é um verdadeiro desfilar de provas a favor do auxílio à iluminação do Caminho da Salvação, entregue a todos os pregadores cristãos, como “luz do mundo e sal da Terra”.

Porém, o grande momento do Novo Testamento a favor do auxílio às Escrituras (portanto contrário ao Sola Scriptura) foi numa ocasião em que um mordomo eunuco de uma rainha da época, chamada Candace, regressando de uma cidade a outra, encontrou pelo caminho a Felipe (aliás, Deus o levou até lá) e o eunuco, quando Felipe fez a pergunta contrária ao Sola Scriptura (“entendes o que vens lendo?”), sem pestanejar respondeu: “como poderei entender se ninguém me explicar?”…

Mas a nossa consciência não tem “lastro” suficiente para ver TODAS as implicações desta constatação óbvia, sobretudo se estivar há anos ou décadas acostumada a ouvir só o lado interno de sua igreja. Por outro lado, se a intenção secreta era apenas denegrir a interpretação católica, assumir a incoerência de uma nova interpretação particular não incomodará consciência alguma, uma vez que a mente, seduzida pela acídia e pelo conforto da pertença a uma presumida Casa de Deus, lutará bravamente para se manter ali, custe o que custar, e arremessará “o apelo incômodo” no mar de lama da igreja mais velha, tal como os irmãos mais novos sempre poderão alegar que o mais velho foi quem os induziu ao erro.

Entretanto, a bravata do Sola Scriptura é tão hedionda que não apenas dividiu o Cristianismo, mas trouxe com ela uma série de outros equívocos, porque uma desgraça nunca vem sozinha. Por exemplo: esmaeceu a cultura cristã; relativizou a instrução pastoral; criou o clima de desconfiança recíproca entre estudiosos da Bíblia; roubou ou esvaziou todo o valor da literatura cristã, deixando-a órfã de pai e mãe, como se Deus estivesse amordaçado e não pudesse mais inspirar ninguém para o ensino das Escrituras; eliminou ou minimizou o valor da Teologia, incentivando a eleição de ministérios pastorais sem formatura alguma, ou a depender da mera inspiração pessoal (que mesmo assim irá ensinar a outros!); enfim, um desastre estrondoso, sem contar a queima das bússolas atualizadas das encíclicas papais e outras instruções do Magistério, por total desprezo da primeira e única Noiva de Cristo.

Finalmente, a Escola de Aprofundamento Teológico já pôs à disposição do grande público a 1a Edição de sua obra específica para tratar dos “Cinco Sola”, e o leitor pode ter um bom complemento deste artigo (que a médio prazo será incorporado à 2a Edição) clicando num dos links fornecidos ao final deste texto. É uma singela contribuição para com o longo e penoso trabalho de Deus para reunir, num só rebanho, todos os presunçosos e trabalhosos filhos do mundo, cujas almas Jesus não desiste de tentar buscar. Se esta contribuição será bem recebida (ou até entendida) é outra conversa, e acreditar numa resposta hostil não será nenhum absurdo. Oramos a Deus para que pelo menos a boa intenção seja percebida, sem a insinuação de ser mais um mero apelo proselitista.

Links para o livro citado:

<https://www.clubedeautores.com.br/book/133179–Sola_Fide_Sola_Gratia_e_Sola_Scriptura>

<http://www.agbook.com.br/book/133179–Sola_Fide_Sola_Gratia_e_Sola_Scriptura>

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