Sonhos: “Ensaio da construção do Céu”

Na esteira do entendimento de uma frase enigmática de Jesus (“Vou preparar-vos lugar”), está a Ciência dos Sonhos completamente explicitada, e ficou muito mais clara com a colaboração genial de G.K. Chesterton.

o-paraiso-oferecido-em-sonhosDesde criança venho observando os sonhos que vez por outra ou agora quase sempre me invadem as noites mais bem dormidas, e, como um Santo filho de Morfeu, descubro a cada dia mais o segredo da mensagem mais bela e mais confortadora das pregações de Jesus. Quase posso ouvir alguém reclamar que a grande mensagem de Jesus foi aquela que indicou claramente o caminho da salvação (pelo menos pela lógica, isso deveria ser assim; e reconhecer que há uma mensagem clara também pressupõe mensagens pouco claras ou até obscuras, no bom sentido, por constituírem uma instrução difícil de distinguir entre tantas afins e ao redor das várias memórias que as registraram nos livros canônicos!).

Porquanto onde estaria clareza no caminho da salvação? Ou onde se poderia identificar, nas Escrituras Sagradas, uma única instrução de salvação que jamais levante dúvida um só segundo numa única consciência humana? Se isto alguma vez hipoteticamente acontecesse, tratar-se-ia de mais um milagre incognoscível, chegado ofuscadamente à embaçada consciência humana, iluminada por um vislumbre pouco inteligível e pouco confiável. Eis que efetivamente não foi a doutrina da salvação a mais simples de digerir (embora seja a mais necessária), dadas as muitas variáveis a ela atreladas, como sugere uma soteriologia bem estudada.

sonhandoO imbróglio metafísico onde se meteu o coração humano após a Queda impossibilitou o próprio Deus de proceder com ações claras à nossa agora turva visão, porque o nosso coração também se tornou para Deus uma coisa turva, e somente com as lentes de um milagre portentoso o Senhor pôde imiscuir-se na História e sugerir atalhos aplainados, sem a correspondente clareza de resposta dos olhos humanos, cujo pecado embotou. Conquanto a Queda tenha erigido no Homem uma cegueira de tal complexidade, e na visão de Deus tenha erigido uma escuridão de tal densidade (uma densidade literalmente infernal), a Palavra de Deus – toda comunicação vinda da Providência – teria que incluir outras mensagens de auxílio, não exclusivamente para a salvação propriamente dita (o caminho da cruz), mas para a salvação da incapacidade mental de captar a própria necessidade da salvação e as tarefas interiores que a possibilitariam, capazes de levar a tarefas exteriores de cura social.

E é aqui que uma mensagem “paralela” (por assim dizer) toda especial brilha nas trevas e retumba com eloquência cósmica, deixando a antevisão de uma tarefa pesada, não nossa, mas de Deus, que só pode ser captada por uma mente que tenha, no mínimo, iniciado seu complexo atalho de santidade em meio às seduções do mundo. Foi como se Deus suspirasse de cansaço e soluçasse, de exaustão, depois de dar todas as instruções e não obter retorno algum das almas confusas. Foi como se Ele, depois de operar centenas de milagres ao vivo, depois de escrever a Bíblia inteira de viva voz, depois de dizer que iria morrer na cruz, depois de ressuscitar ao terceiro dia, e depois de explicar até mesmo como seria o Juízo Final das ovelhas e dos bodes (Mt 25,31-46), ouvisse a Humanidade inteira dizer que não entendeu nada, e que Ele fosse embora como um palrador louco!

24-12-2014 Messa Notte di NataleEntão, depois desse “insucesso” retumbante (talvez haja aqui alguma luz para entender porque o Papa Francisco disse que Jesus “fracassou”… – porque nosso pecado foi tão hediondo que o próprio Deus, que nunca havia experienciado Ele mesmo a vida na carne humana, tivesse ficado “meio opacificado ou meio confuso” entre QUAIS decisões tomar, já que lidava com almas livres), Jesus “desesperou-se” – como aconteceu quando olhou Jerusalém do alto do monte (Mateus 23,37-39) – e disse, talvez sorrindo por fora e chorando por dentro: “vou preparar-vos lugar”… E ali escreveu outras cem bíblias que nunca chegarão às nossas mãos!

Mas dentro de nós, dentro das almas rebeldes que Ele veio tentar salvar, também havia e há alguns ínfimos resquícios da bondade que um dia tivemos em Adão e Eva, e Jesus contava e conta com esses resquícios, ou espera que eles de alguma forma ajudem a iluminar alguma coisa, “facilitando” o caminho para nossos pés trôpegos e andares cambaleantes. Um desses ínfimos resquícios ainda vivos após longos séculos de pecados, embora ainda assim inseguros, é a construção íntima dos sonhos, que nosso adormecer pode ensejar, dependendo do tipo de noite que tivermos após um dia de trabalho pago ou de cansaços não remunerados.

Quando o milagre do adormecer se configura, e se ele pôde ser acompanhado do milagre de algum mínimo relaxamento real, e este tiver podido ser capaz de fazer chegar a mente à fase REM, então o âmago do ser se deixa entrever, ou alguma luz anímica ultrapassa a densa nuvem do prazer de estar na carne, e assim o Homem pode curtir um átimo de si mesmo, ou pode se sentir navegando livre sem um corpo tridimensional, do qual ele nunca tem uma visão clara. Aliás, na maioria das vezes, não são vistos corpos, exceto de terceiros. Há uma estranha sensação de liberdade, capaz de correr ultrapassando com folga qualquer obstáculo, e muitas vezes as ultrapassagens parecem sair do chão, ou as distâncias são vencidas pelo alto, em exercícios de vôo livre sob a admiração de todos os transeuntes. Corre-se em quase todas as histórias, e em quase todas as corridas não há cercas, nem muros, nem postes, nem carros, nem árvores, capazes de impedir nossa ultrapassagem ou sobrevoo.

E quando a cena é mais interior ou mais próxima, na qual nossos braços ou pernas são vistos quase sempre de soslaio, há também a sensação de que braços e pernas podem alcançar uma distância muito maior, como se aquela estranha pele fosse elástica, ou como se seu alvo é que fosse elastecido para perto de nós e assim fosse facilmente tocado, apalpado, batido. E quando nossa mão precisa entrar fundo num longo cano estreito, é como se ela ficasse mais estreita que o cano e nos trouxesse a pérola que nossa infância deixou cair ali. Enfim, tudo prova que nossos limites não são estabelecidos pelo alcance de nossos corpos, mesmo que sonhemos possuindo corpos de gigantes!

frase-cartaz-sobre-chesterton2É aqui que me lembro de G.K. Chesterton, o gênio que ‘converteu’ C.S. Lewis. Num dos livros de “Cheston”, o que mais amei (“O Homem Eterno”), o gênio cristão faz uma pergunta estonteante, aparentemente endereçada a quem está dormindo consciente ou a quem está consciente de que seu sonhar é tão real quanto seu cotidiano… E nenhuma alma recebeu aquela pergunta sem ouvi-la reverberar nos sinos recônditos de suas entranhas, como se estivesse na Terra Santa há 2.000 anos ouvindo os sinos de Belém! “Cheston” perguntou: “Quem não sente que os sonhos se situam no limite do ser?”…

Ora; quem responde Cheston? É óbvio: só os mortos não respondem! Aliás, almas mortas! Almas que ainda não chegaram a ser! Porquanto salvar-se não é apenas deixar de estar perdido para estar salvo, mas é passar a ser um ser que ainda não tinha começado a existir! Salvar alguém não é apenas jogar-lhe a corda em meio à correnteza caudalosa! É antes fazer com que o afogado saiba que não é apenas uma coisa levada pelas águas, mas uma consciência que pode olhar e ver a velocidade da água e a queda d’água ali à frente! Salvar é dar sentido de existir ao afogado; é depois ampliar-lhe a consciência de tal modo que ela levite e saia da correnteza sozinha, observando quão perigosa é a vida sem ver as consequências.

cerebro-dormindoEis porque 99% das ideias de salvação pregadas no mundo são literalmente ilusórias… Porque propõem salvar a quem mal sabe que existe! Era a carpintaria de Fígaro: de nada adiantava fazer lindo o Pinóquio, enquanto este não ganhasse vida. E o boneco também só amaria Fígaro, depois que ganhasse coração de carne. Mas o Salvador também “foi salvo” pelo milagre de uma Queda que não quebrou o Homem inteiro! Lewis disse que na Terra o pecado atingiu apenas duas dimensões do Homem (Mateus 26,41), e que se a Queda tivesse ocorrido num outro mundo que ele conheceu, o primeiro casal de lá teria ficado irremediavelmente perdido, pois teria caído em três dimensões, e aí não haveria mais nada a salvar!

Eis porque aquela palavra de Jesus foi tão crucial e tão certeira: “Vou preparar-vos lugar”. Quem quer de nós que um dia tenha sonhado um sonho lúcido (ou mais próximo possível da lucidez) já percebeu claramente que as histórias vividas nos sonhos são construídas com fragmentos da realidade que ainda se misturam ao desconserto de nossa memória; e, da mesma forma como no cotidiano misturamos lembranças sonhadas com lembranças vividas, no meio do sono pesado a realidade sonhada tenta entrar na realidade dormida e nos mostrar que somos muito maiores do que nossos corpos, ou pelo menos que a realidade é muito maior do que aquilo que nossos olhos físicos enxergam quando estamos acordados! Eis a pedra de toque!

E Jesus um dia sacou isso muito bem, quando Ele mesmo cresceu em graça e em sabedoria diante de Deus e dos homens, e aprendeu pessoalmente COMO a alma humana vai sendo construída, de luz em luz, de ato em ato, de sonho em sonho. Até que um dia Ele, já adulto, deixou escapar um segredo que Ele nem precisava dizer, até porque ninguém iria entender mesmo. Instado a contar para onde estava indo que não podia levar ninguém, só lhe veio à mente adiantar-se muito e revelar uma obra inalcansável pela consciência humana, não apenas por estar no futuro incognoscível, mas por conter elementos de profunda Teologia e por pedir emprestadas “substâncias” de nossa própria alma para que fosse viável! Então Ele respondeu a Pedro: “Vou preparar-vos lugar”, e depois de todos esses séculos, só um Pedro idoso e lúcido, que chega sempre ao sono REM, conseguiria vislumbrar um sinal de realidade concreta na escatologia daquela resposta.

cg-jung-a-sabedoria-dos-sonhosOra; sendo nossos melhores sonhos construídos com “substâncias” próprias de cada alma, capturadas de memórias emaranhadas entre a realidade terrestre e a celeste que um dia tivemos em Adão e Eva, a resposta de Jesus é quase uma parábola junguiana, e termina por indicar que se o Salvador subiu aos céus para PREPARAR um lar especial para nós (“se preparar” aqui tem até cheiro de alvenaria), e se os sonhos lúcidos mostram outra realidade para os nossos corpos, fabricada a partir de lembranças capturadas do passado e do cotidiano, não é inexato afirmar que nossos sonhos são um ensaio da construção do Céu, e as almas que exultarem em cada sonho estão recebendo de Deus um “test drive” ou “uma prévia” do Paraíso, e com ela tendo muito mais chance de gostar do novo Lar que um dia receberão.

Está explicado porque CS Lewis usou de toda a sua eloquência para ensinar que de nada adianta crer em Jesus e não ter adquirido, ao longo da vida, a qualidade benigna de caráter que só consegue ser feliz em obediência irrestrita ao Senhor, cuja virtude só se dá pela prática contínua do bem, que termina por tornar seu praticante realmente bom. É outra forma de ver o bom contágio (“O Amor é contagioso”). É outra forma de ver que as boas obras “salvam”. É outra forma de ver o que os sonhos mostram: os limites de nosso ser neste estágio da Criação, os quais transcenderemos naquele Céu preparado por Jesus e construído com as nossas mais caras lembranças.

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(*) – Há um perigo subjacente à má interpretação deste artigo; porque ele não propõe, de nenhum modo, nenhuma fórmula artificial de se ter sonhos lúcidos, nem na forma como o Dr. Waldo Vieira ensina, nem na forma como a indústria farmacêutica está propondo agora. Ter sonhos lúcidos somente é citado na exata expressão de GK Chesterton, que enxergou em suas noites sóbrias as realidades alcançadas por seu corpão de mais de 2 metros de altura, antevendo suas viagens ao Paraíso construído por Jesus. Tentar qualquer outra via pode ser, inclusive, um mergulho no não-ser.

 

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