O grande sinal de inimizade contra Deus

Os chamados “melhores cristãos”, com fama de bom coração, perdem-se terrivelmente na incoerência quando se trata de se controlarem diante de uma agressão verbal ou de uma mera resposta negativa.

homem irado2Ser manso é muito difícil, garante a tradição histórica das grandes religiões, equivalendo a usar a palavra “cristão” no lugar de manso quando se trata de denominações evangélicas ou católicas. CS Lewis dizia que a disciplina mais complicada e menos apreciada da doutrina cristã é justamente aquela parte que exige o nosso amor ao próximo e até rezar pelo bem dele, quando se trata de uma pessoa detestável e implicante, que na maioria das vezes nos quer mal ou nos trata com injustiça. Isto é assunto que dá náusea e nojo nos ouvintes, segundo Lewis, mas é aqui que se esconde o grande trunfo cristão, ou o grande diferencial de mérito reservado às almas humanas.

O assunto é trazido à baila em razão da esmagadora escassez de mansidão no mundo pós-moderno, o que equivale a dizer que encontrar alguém que não reaja ou reaja com simpatia após uma ofensa ou agressão verbal, é algo tão raro que um simples comentário acerca do quadro atual pode deixar o comentarista sob ameaça das hostilidades que veio denunciar. Pior, não há outra conversa a introduzir quando a questão é saber se alguém é um cristão ou não, e hoje em dia NEM o próprio exemplo do Cristo serve para convencer alguém de que está errado em sua forma vingativa de reagir. Neste sentido, a Palavra de Deus perde todo o seu prestígio, extinguindo-se cabalmente com a mesma ferida que matou a Moralidade e a Ética.

Cartaz Camp Fraternidade 95bTrocando tudo isso em miúdos, todos se consideram cristãos e até boas pessoas, enquanto uma situação estressante de conflito com uma pessoa próxima não lhe fervem o sangue, ocasião em que religião nenhuma, piedade nenhuma, ética nenhuma, apelo nenhum e mesmo educação nenhuma têm poder para impedir o revide, e até um fratricídio se torna pensável no estado encolerizado que a agressão gerou. Assim sendo, para facilitar ainda mais o entendimento do que estamos falando, vamos pensar num exemplo prático bem visível.

Suponha que você leitor, seja você quem for (não lhe conheço), esteja num ambiente de lazer ou de trabalho e uma pessoa presente, em razão do que supostamente ouviu de você, resolva tomar a sua frente numa diversão ou lhe cortar ocasião para uma oportunidade de ascensão funcional. E ainda por cima, faça isso fofocando, ou com uma palavra antipática ou ranzinza, deixando você numa situação vexatória e/ou prejudicial, e sem se importar com o resultado desastroso para seus planos. A reação comum ou própria da Humanidade em estado bruto seria a de revidar com uma palavra grossa e hostil, geralmente elevando o tom de voz e baixando o nível das expressões, até chegar a palavrões e agressões pessoais (nem é preciso dizer que, se este processo continuar, sobretudo se ocorrer entre pessoas de pouca instrução, desembocará sem dúvida na agressão física e em muitos casos até no risco de uma vingança sangrenta): esta é a reação comum, ou “humana”. E você, como reagiria?

Homem iradoSe conseguir ser honesto nesta hora, dirá – até com orgulho – coisas como: “sou do tipo que não leva desaforo pra casa”; ou “comigo, escreveu não leu, o pau comeu!”; ou “dou um boi para não entrar numa briga, mas dou uma boiada para não sair”; etc. Não é isso mesmo? Pois bem. Aqui está o nó cego desta questão tão complicada para a evolução da Humanidade, e da qual depende toda a teologia da salvação da alma humana, que aqui pode ver com clareza o que significa ser uma alma perdida.

Este não é um discurso apelativo. Que o leitor fique bem certo. Porquanto, se podemos levar as palavras de Jesus a sério (por isso este texto não se destina a ateus, que não querem crer em Deus justamente para não ter que “mudar” a sua alma e a liberdade de suas reações animalescas!) e se o que a maioria das religiões dizem sobre o ódio for verdade, então precisamos urgentemente de uma dura reeducação espiritual, na qual esteja contemplada a chamada “Psicoterapia da Reação”, cujo foco é desarmar a alma o suficiente para o ser humano poder conviver em todas as situações sociais, e não apenas quando somos bem recebidos por gente sorridente.

Não são poucas as instruções religiosas nos quatro cantos do mundo que ensinam a necessidade, imperiosa, de cada indivíduo saber viver as dificuldades próprias da convivência humana, e os exemplos de Santo Estêvão, São Francisco, Marratma Ghandi, Jesus Cristo e tantos outros, provam que não existe teologia bem sucedida sem que o processo de amansamento do Homem tenha surtido efeito. Falar sobre o trabalho de refazer a amizade com Deus, ponto alto da Teologia Relacional do Cristianismo, é isso mesmo que as palavras querem dizer, i.e, esforço, trabalho, refazer e amizade. Veja então o leitor que um outro problema interfere, ou seja, ninguém gosta de trabalho, sobretudo quando é o refazer (retrabalho) e quando exige de nós engolir os sapos das antipatias gratuitas pessoais. Até porque nunca vemos os sapos que cuspimos nos outros, e sempre vemos os sapos dos outros como enormes e fétidos.

ira-raivaO problema fundamental é que só Deus pode dizer o quanto estamos longe do padrão de mansidão de Jesus, e quando qualquer ser humano vai investigar o que Jesus pediu para nós, só tem duas saídas (que são crenças burras): (1a) acreditar que Jesus, que é Deus e portanto não erraria num julgamento, pediu uma coisa impossível para nós; ou que (2a) estamos tão longe do que Ele nos pediu que certamente a salvação da Humanidade é impossível! – Os dois raciocínios estão, felizmente, incorretos. Ele não pediria o impossível para gente tão medíocre quanto a raça humana, e Ele tem amor suficiente para nos salvar, mesmo se não conseguirmos amar o próximo como Ele. [Os registros falam que Ele mesmo um dia disse para nós: “Sede perfeitos, como perfeito é vosso Pai celestial”; outros relatos dizem que Ele ensinou: “Se te baterem na face esquerda, dai-lhes também a direita”; outros textos sagrados dizem que “se não perdoarmos a quem nos tem ofendido, não seremos perdoados”; e finalmente está escrito que “devemos amar o próximo com o amor com que Ele nos amou!”… Isto é que é dureza!].

Segue-se que nenhum de nós pode sequer sonhar com uma aproximação do padrão de Jesus sem iniciarmos, o quanto antes, um esforço moral sério, em direção oposta aos nossos instintos mais primitivos, matando dentro de nós, a cada dia, o nosso ego rebelde, herdado do homem das cavernas. Isto é o resumo perfeito do que diz o Evangelho e a maior lição de CS Lewis, colhida pegando carona nos Evangelhos. Qualquer outra tentativa é inútil e ilusória, e por isso chamar a cada um de nós de “cristão” é uma verdadeira piada. O pior é que existem cristãos que se acham cristãos pelo simples fato de acreditarem que a fé em Jesus é suficiente para a sua salvação, sem que nem uma célula de seu coração tenha sido domada pela mansidão de Jesus.

Cristãos com dedo em riste ou olhos de fogo contra o seu próximo é muito mais comum do que se pensa, e as desculpas vão desde o jugo desigual com incrédulos até a crença de que não se tratava de um cristão (como se crer em Jesus mudasse tudo da noite para o dia). Ouvir as histórias da porca lavada que voltou à lama e do cão que voltou ao vômito (II Pe 2,22) é uma prova de que a fé sozinha não basta, e que o desastre está à frente de quem apenas crê. Ouvir Tiago dizer que a fé sem as boas obras é morta (Tg 2,17 e 24) equivale a entender a morte como a inexistência, ou a segunda morte, que é a inutilidade final da criatura. Quanto aos outros, os descrentes, nada há a fazer. Eles são bestas-feras indomáveis, a um passo da vingança e do crime.

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