Por que os velhos esquecem tanto das coisas?

Além da entropia implacável da velhice, que destrói as células cerebrais e as sinapses, há algo mais a considerar nos esquecimentos frequentes, e talvez haja uma razão positiva a produzi-los.

mulher-idosa-triste-com-amnésia2A vida humana é cheia de histórias e casos, e fomos criados para registrar, no fundo de nossa psique, todos os eventos com os quais travamos contato. E se não tivesse ocorrido a tal Queda do Homem, certamente nossa memória lembraria de tudo, e ainda saberia selecionar aquilo que serviria melhor para uso, e aquilo que poderia ficar apenas arquivado, sem que isto um dia acordasse e viesse atrapalhar a paz da consciência.

Após a desastrosa Queda, entretanto, a memória de todos os homens passou a falhar, e não apenas como resultado da entropia corrosiva do corpo, mas também como efeito da vontade rebelde, que deliberadamente apaga aquilo que incomoda ou repreende o ego narcisista. Como cura ou último remédio para o desastre, o efeito decorrente não foi o pior, embora tenha o mesmo espírito providencial e proverbial de algo realizado “para evitar um mal maior”. Se a memória foi golpeada de morte no Éden, então nada mais lógico do que permitir uma falha intermitente e seletiva, pelo menos enquanto durasse a saúde física em geral.

Queda do HomemAssim sendo, os homens vão vivendo e se esquecem de muitas coisas em todas as idades, mas também se lembram de muitas coisas, ficando todo o restante perdido, para o bem ou para o mal. Esta situação perdura até mais ou menos os 60 anos de idade, quando então a memória passa a falhar drasticamente, e até irritando quem por ela é vitimado. As memórias mais presentes (ou mais próximas no tempo, e também as mais necessárias aos afazeres cotidianos) são as que mais falham e mais irritam, pois provocam prejuízos terríveis às rotinas diárias, não sendo raros os casos de esquecimento de fogões acesos, portas trancadas com a chave dentro, documentos importantes que ficaram no banco do jardim e a chuva molhou, viagens de carro sem verificar o estado dos pneus, recados de urgência que não foram dados, etc. Isto é uma abordagem geral do drama da memória humana, que se agudizará a partir daqui.

O problema é que a vida depois da Queda é sempre arriscada, por mais que queiram se iludir os defensores do otimismo cego ou do positivismo radical. Viver sobre a superfície de um planeta já é um risco de per si, bastando lembrar a queda de meteoros e outras intempéries, e sem considerar os revezes das próprias errâncias humanas, que cooperam entre si para deixar a vida ainda mais tensa ou sem graça, sobretudo quando não se vive intimamente a Graça de Deus.

Dentre os riscos a que todos estão sujeitos, seguem assombrosamente os perigos espirituais (Hebreus 6,1-6), quase sempre invisíveis ou camuflados, cuja incidência tende a propagar-se e a perpetuar-se na alma, afetando também a vida cotidiana. O maior de tais riscos, nem se nomeia, vem sempre para a alma perdida entre seus raciocínios e desejos, e constitui, na maioria dos casos, a infelicidade do descontrole do destino, em toda a sua polissemia. Mas não é propriamente este o nosso assunto. Um estágio anterior é mais útil discutir, não apenas por sua maior frequência, mas pela atual “febre” mundial incentivada pela Psicologia pós-moderna.

Chamou-se o problema de “Depressão” (cujo sinônimo também é “abismo”, segundo os dicionários), e o que foi explicitado no século passado foi “comprado” pela mídia de massa, após descobrir o tremendo IBOPE suscitado em torno de prazeres e pavores. O sexo e o medo ganharam o Oscar da Atração, com o mundo inteiro ávido por matérias que os entronizam e espalham, feito papel picotado ao vento. Entendamos então resumidamente a Depressão, para evitar malentendidos.

AmnesiaA Depressão ocorre quando uma “simples” contrariedade converte-se em decepção e esta se transforma, logo depois, em tristeza pegajosa. Este tipo de tristeza gera a angústia da dor e a dor da angústia, que faz da tristeza uma coisa permanente, e cujo desenrolar leva à Depressão. Todo o processo acima descrito é perpassado por buscas e raciocínios cíclicos, tendentes a ampliar o círculo a cada volta. Cada círculo conta com más lembranças, ora completas ora fragmentadas, de acordo com o efeito maior ‘pretendido’. E assim a mente se fende, a alma se inquieta e a morte espreita ou “consulta” a consciência.

É então que Deus precisa intervir. Ele sabe que a memória é uma parte essencial da alma, ou “do próprio SER para vir a ser”, sem a qual a auto-identificação fica prejudicada ou nula. Ele viu também o quanto a Queda edênica danificou este item imprescindível de sua Criação no Homem. Logo, após a Queda, providenciou ações de reparo, dentro do alcance permitido pela parte da alma não regida pelo Livre-arbítrio, e ali fixou as bases de uma memória de resgate, única capaz de ensejar uma vida humana mais – ou menos – longe do risco maior da anulação-fusão da alma pelo seu obsessor, o inimigo das almas.

Isto então já faz vislumbrar porque os velhos se esquecem tanto das coisas, e o caso se dá, em tese, assim: tendo colecionado infinitas memórias ao longo da vida (todas armazenadas, bem ou mal, no subconsciente), muitas coisas deveriam ser lembradas com fluidez, e muitas deveriam ser esquecidas, pelo bem maior do controle individual da lucidez, mantendo cada mente em perfeita sintonia com cada alma. Como a vida inteira foi vivida em regime de pecado, muitas experiências jamais deveriam ter ocorrido, e o retorno delas sempre poderá desencadear as mazelas a elas atreladas, trazendo consigo os obsessores parasitas, interessados exatamente na fusão daquela alma com a alma das trevas. O Criador então vê todos esses perigos e, na maioria das vezes, com as mãos amarradas pelo Livre-arbítrio das criaturas, não encontrou outro caminho senão o de “fragilizar e/ou desconectar a alma de certas sinapses neuronais”, fazendo o indivíduo perder memórias que nunca deveriam voltar, embora com isso perdendo memórias das quais jamais deveria prescindir. Eis o único resumo possível para um simples artigo.

perda-de-memoria-alzheimerA sociedade inteira e, sobretudo as famílias, não conseguem conviver bem com os idosos, por conta dos esquecimentos frequentes, muitas vezes irritantes e perigosos. Isto é verdade, sem dúvida, e não podemos esquecer das famílias “angelicais”, cujos velhos são tratados como a florzinha do Pequeno Príncipe (não é o nosso tema). Porém, de um modo geral e bem apoiado pelas estatísticas, a maioria não sabe conviver com os velhos, o que explica a enorme quantidade deles que são despejados em clínicas de repouso e asilos, onde geralmente morrem sem a proximidade dos parentes. Todavia, na calada da noite da senilidade, e nos labirintos do subconsciente, Deus se mantém operando milagres invisíveis e especialmente salvadores, longe do que nem sequer imagina a maioria dos familiares dos idosos.

Deus fica “acima dos cordões de marionetes”, vendo a operação abaixo de si, e dando uma puxada ou outra nos fios, ou um empurrãozinho ou outro nas hastes, tudo para fazer eclodir apenas memórias saudáveis, incapazes de gerar o desespero da proximidade da morte, deixando o paulatino passamento “lubrificado” com um mínimo de consciência, enquanto consola e conforta a alma num ninho de amor que protege e ilumina. As demais memórias, aquelas que muitas vezes o velho até gostaria de lembrar, ficam congeladas e ocultas, e no meio delas se vão chaves perdidas, nomes omitidos, documentos guardados não se sabe aonde, dias sem nexo e todos aqueles esquecimentos que irritam quem lhe rodeia. Desta forma, protegido das imundícies sugeridas por obsessores, o cérebro pode se “desintegrar tranqüilo”, sem que a alma sofra maiores influências desesperantes, encarando o desencarne como um mero adormecer (certamente indolor), até que os olhos se abram de novo numa Alvorada Eterna, olhando para o Paraíso feliz.

Está explicada a razão das irritantes falhas de memória dos velhos de nosso convívio, e faríamos bem se entendêssemos que seus esquecimentos são uma providencial estratégia de Deus para garantir a chegada mais rápida ao Paraíso, ou uma subida menos arriscada pelos túneis escuros do Vale da sombra da morte. Pelo menos, se tivermos a divina “sorte” de contar com estes auxílios de Deus, geralmente executados por anjos do Além, nem precisaremos lembrar dos desconfortos e irritações que provocamos nos nossos familiares mais carinhosos. Um dia eles também serão esquecedores e chatos, e seus filhos e netos é quem os suportarão. Mas pelo menos agora eles podem saber que esquecer é muito bom, às vezes até melhor que lembrar. E eu não me lembro para que escrevi isso.

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