O caráter voluntário e controlado da misericórdia divina

Ao dizer em sua palavra “Eu tenho Misericórdia de quem eu quiser ter”, Deus se apresenta como uma mente tão consciente de seus poderes que para entendê-LO bem, nem mesmo o Amor infinito seria um critério seguro, como se poderia esperar de um semideus com um ponto-cego em seu controle mental.

Coração misericordioso de Jesus-1O apóstolo s. Paulo diz, em sua Carta aos Romanos, capítulo 9, verso 15: “Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia, e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão”. Todavia este mesmo trecho bem traduzido diria o seguinte: “Eu tenho misericórdia de quem eu quiser ter”. Ouvindo outra vez esta impressionante sentença, as orelhas se curvariam para dentro e quase não querem mais ouvir, pois se trata da pior, da mais violenta ou da mais “independente” declaração de Deus à Humanidade, que até hoje acreditava contar com uma misericórdia infinita e até “automática”, “tamanho era o Amor de Deus” no entendimento do Zé povão. Ledo engano. Enfim, é esta batata quente que vamos tentar descascar aqui.

O único Deus verdadeiro, na sua unidade divina em três pessoas distintas, para estar em conformidade com a mais alta teologia (a Teologia da Trindade), precisaria ter todos os atributos lógicos da onipotência e do infinito, e infelizmente e Humanidade se esquece de muitos desses atributos, como a humildade infinita e a justiça perfeita. Mas também sempre escapou, da consciência do homem natural, a questão da voluntariosidade do coração de Deus, que é inteiramente diferente do coração humano, porque controla tudo, dentro e fora de si.

Neste sentido, não há nada nele que pudesse significar algum gesto impensado ou qualquer reação impulsiva, por conta de um ato reflexo ou um repuxo de nervos. Não. Ele é todo controle e controla tudo, sendo a medida exata da perfeição organizacional, onde tudo sempre sai como planejado e organizado, exceto se Ele mesmo permitisse o contrário. Sua exatidão psicológica e sua inteligência emocional jamais permitiriam, como consequência do próprio fato de ser perfeito, que Ele cometesse algum ato “fora de sua vigilância insone”, e por isso episódios como aquele “do roupão de Jesus”, do qual Ele disse: “senti que de mim saiu poder” (Lc 8,46), jamais poderiam acontecer em qualquer mundo, a não ser que Ele próprio suspendesse a sua vigilância insone, permitindo fenômenos “meio involuntários” numa mente divina.Filho-pródigoAqui chegamos à Misericórdia voluntária. Muitos de nós sempre pensamos que Deus-pai, à moda do pai do filho pródigo, seria capaz de correr pelos campos para abraçar o filho perdido que volta imundo, independente do quão nefasto tenha sido o rapazote, e o quanto de maldade tenha praticado, mesmo que nessas maldades tivesse estuprado criancinhas. Muitos de nós chegamos a pensar que Deus “nem olharia mais o passado do cara”, e assumiria que o mancebo se arrependeu de fato e de direito, e agora já estava livre de todos os seus vícios, como pensam os protestantes quando dizem que as almas passam pelo arrependimento quando se entregam a Jesus (como se as almas tivessem que se arrepender apenas uma vez na vida e já ficassem livres de seus vícios!).

Mas Deus não vê como o homem vê! Para o Pai do Céu correr atrás de nós antes de voltarmos à casa paterna, Ele já olhou nosso coração e já verificou se aquelas lágrimas patéticas eram de fato arrependimento ou fingimento, e jamais nos abraçará sem que a resposta seja “sim-SIM não-NÃO”! (Mt 5,37)… E pior: Sua inescrutável justiça é tão intrincada que nenhum critério humano se encaixa nela, como ficou claro na parábola do administrador do campo (Mt 20,1-16: o versículo 15 traz a bofetada final). Porquanto o pai pode correr para abraçar o filho mesmo que ele não tenha se arrependido de nada; e também pode negar o abraço para aquele que não cometeu pecado algum, como parece ter sido o caso do outro filho, irmão do filho pródigo (Lc 15,29-32).

Isto posto, a declaração dada a Moisés e reproduzida por Paulo em Rm 9,15 deve ser encarada como a mais nua e crua verdade passada desapercebidamente por nós, talvez mal acostumados a ouvir o povão gritar babaquices e a ouvir nossa própria ignorância interior a sussurrar: “Não se preocupe e faça o que lhe der na telha: Deus é tão misericordioso que um dia sairá poder do roupão dele e você será curado quase que involuntariamente por Jesus, tal como Ele curou a mulher com hemorragia!”. Tosco engano! É bom repetir isso sempre para perturbar o sono de nossa alma…

Mulher do fluxo de sangueQuando chegarmos ao Juízo Final, Ele não estará com o “roupão mágico” de Jesus, e terá misericórdia 100% consciente, e somente após verificar se seu coração já deixou de ser de pedra e passou a ser de carne, e agora de uma carne ressurreta! Não se engane: Ele provará ali que terá misericórdia de quem quiser ter, e não de quem achou que merecia! As ingentes surpresas que todos terão no Juízo Final (apontadas pelos profetas) se darão justamente por isso: porque muitos que para nós mereciam o inferno, Ele quis salvar e correu para abraçá-los ainda imundos, antes mesmo de estarem no caminho certo da volta para casa (quem vai saber por quê?). E muitos que para nós mereciam o Céu, veremos do lado esquerdo dEle! (Mt 25,41).

Enfim, Ele se apieda das almas que agradaram estranhamente o seu “estranho” coração (‘estranho’ para nós injustos), e não daquelas que nós julgávamos capazes de agradá-LO!. Ele não ouvirá as nossas orações como muitos dizem, “indistintamente”, mas escolherá voluntariamente aquelas que sua retaguarda retribuirá. Ele salvará somente os que para Ele O amaram, e não os que nós acreditávamos amá-LO. Quase ouço palmas dos calvinistas, mas não há aqui nenhuma abertura para a possibilidade de uma salvação preconcebida. Se você é cristão e não está acostumado a humilhar-se diante do Mistério Supremo, então está na hora de fazê-lo, antes que cheguem os maus dias em que não sentirá mais nenhum prazer ou nenhuma energia para se iludir.

 

Esta entrada foi publicada em Arte de Desaprender. Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *