O perigo do reducionismo na pregação do Evangelho

Ou “o estranho Deus que negou-se a si mesmo”, num milagre que até hoje não é 100% compreendido nem mesmo pela cristandade, sobretudo quando é analisado pela ótica da ausência da morte e do tempo

Vencendo o HadesO mundo inteiro sabe o quão diferentes somos de Deus, e o quanto, melhor dizendo, Deus difere de nós. Nem era preciso Ele dizer “os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os meus caminhos os vossos caminhos”. Também todos sabem que o centro da mais dura e difícil exigência de Jesus ficou impresso a ferro e a fogo quando Ele disse “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me” (que nenhum leitor esqueça ou negligencie o “SE” inicial, que é a mais perfeita prova de que Deus dá total liberdade de escolha e não bajula ninguém, e se fizermos pouco caso dele, podemos apostar que Ele fará pouco caso de nós!). Tudo leva a crer que, uma vez que veio para dar exemplo, Ele também é o “alguém” desta sua própria frase.

Todavia o mais mirabolante nesta visualização do Deus que se nega não se refere nem às enormes diferenças óbvias entre o Criador e as suas criaturas, nem à exigência de negação de nós mesmos para ganharmos a amizade dEle. O que impressiona de fato ao investigador mais atento da Teologia é o atributo divino da humildade, que sem dúvida é a menos compreendida de todas as características de Deus, talvez até de impossível compreensão, pelas colossais diferenças a priori e inexoráveis, obrigatoriamente embutidas no raciocínio de quem o esquadrinhar.

Tudo porque a ideia humana de um Deus onipotente sempre pressupõe um ser portentoso, não apenas “Senhor”, mas “Senhor de si”, e no qual a própria onipotência jamais é auto questionada e muito menos “congelada”, deixada de lado, tal como um militar em combate jamais deixa de lado o seu fuzil ou o seu plano de batalha. A estranheza ou até o exotismo de Deus começa quando descobrimos ESTA específica diferença nEle, em comparação conosco, únicas inteligências a “avaliá-lo” neste planeta. Pois quem de nós deixaria de lado aquilo que justamente nos faz superior a todos? Qual militar larga o fuzil e parte para a luta corpo-a-corpo? Qual ricaço deixa o carrão em casa e sai pra paquerar garotas de bicicleta? Qual moça deixa o melhor vestido e sapato e usa uma roupinha simples quando vai a festas nos “societies clubs”? Ora: ninguém faz isso! Somos essencialmente exibidos, convencidos, narcisistas e orgulhosos, querendo sempre que os outros vejam (admirem, temam, etc.) as nossas qualidades, nossas belezas e nossos feitos, sempre expostos como “obras de gênio”. Mas Deus não é assim! Vamos tentar entender isso.

Bebê nos olhosTudo em Deus é infinito. Como Ele é apenas bondade, e nenhuma maldade há nEle, temos que dizer que tudo o que é bom é infinitamente bom nEle. Se Ele é belo, é infinitamente belo. Se é inteligente, é infinitamente inteligente. Se Ele é amoroso, é infinitamente amoroso. Se é manso, é infinitamente manso. Se é humilde, é infinitamente humilde: é aqui que a coisa se complica. Pois nenhum de nós supõe (melhor dizendo, pressupõe) que a humildade de Deus poderia levá-LO a ter condutas atípicas, ou típicas de quem não se valoriza o suficiente, porque há milhões de anos nossa autoestima foi contaminada pelo orgulho, e em Deus não. Mas é evidente que Deus se autoestima, como ficou claro quando Ele mandou Moisés inscrever o “amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”. Porém nenhum de nós, hoje em dia, depois de tanto tempo de estrago em nosso coração, consegue amar a si mesmo sem julgar-se bom, melhor dizendo, melhor que os outros. Deus não. Ele tanto sabe que é o melhor, quanto seu saber não é inchado pela arrogância dos inferiores, que precisam “de ar” para inflar o peito e se sentirem mais importantes. A humildade infinita tem a sua missão como óbvia pela total dependência que tudo sente dela e pela total independência de tudo. Este é o “x” da questão, que nunca se deixa encerrar sobre si mesma.

Isto levanta um terrível problema metafísico: sendo o salvador infinito e humilde, e também infinitamente humilde, como Ele entenderia a nossa noção de “único salvador” atribuída a Ele, quando dizemos “só Jesus Cristo salva” (?). Como o infinito poderia ser representado por um ser finito sem se recorrer à polissemia de seu significado? Existiria um Jesus monossêmico?

Ele mesmo responderia, se usássemos de polissemia: Em Jesus Cristo subsistem todos os tesouros divinos, incluindo as qualidades de caráter que alavancam a salvação! Mas como assimilar tais tesouros com um significado único, quando coisas muito mais simples de nossa vida possuem “n” sentidos que fazemos questão de reforçar? Eis que num antropônimo escondem-se inúmeros tesouros da personalidade por trás do nome, pelo que podemos dizer que, ao chamarmos o Aurélio para nos ajudar, estamos também chamando a exatidão, a boa vontade, a organização, o interesse para com a língua pátria, a obediência às regras gramaticais, etc., e por isso o antropônimo Aurélio não é mais apenas um homem, ou o homem, o lexicólogo mais famoso do Brasil, o filólogo da ABL, etc.. Aurélio hoje não é apenas sinônimo de dicionário, mas no Aurélio-homem expressam-se todas as boas qualidades de sua obra, e por isso o lexicólogo é organizado, obediente, bem relacionado, perfeccionista, cultíssimo e de boa vontade para com quem lhe pedir ajuda. No mestre transparecem as qualidades da obra, e na obra são vistas as qualidades do mestre. Isto acontece com todo mundo, e, infelizmente, também em quem é mau, e produz obras más, mesclando sentidos interfundidos entre sua personalidade e tudo o que por esta realiza.

Com efeito, a figura pode e deve ser aplicada a Cristo, para quem quer chegar à exatidão do pensamento. NEle então transparecem as qualidades de Sua obra, e nesta são vistas as qualidades dEle. Logo, seu antropônimo não O esgota, e então dizer que a salvação está nEle é também uma metonímia espiritual, e Seu santo Nome é apenas uma “chave” para “n” sentidos subsistentes nEle.

Dizer “Só Jesus Cristo salva” é obrigar a quem ouve (se tiver um mínimo de inteligência) a fazer 3 perguntas: (1a) “Salva DE QUÊ?”; (2a) “O QUE é Jesus Cristo?”; (3a) “Por que SÓ ELE?”. Na 1a, nem é preciso dizer que “salva de quê” se desdobra em explicações mil, que quase sempre serão tomadas como complicações desnecessárias. Na 2a, há que se explicitar O QUE é, e não apenas QUEM é, pois “quem” aqui é outra monossemia periclitante e empobrecedora, com perdão do pleonasmo. Pois quando a respondemos, estamos explicando na verdade O QUE É Jesus, e não apenas QUEM Ele é. E é O QUE Ele é que nos leva de volta ao infinito. Na 3a, a exclusividade de Jesus não foi imposta por Ele, mas pela necessidade, sentida pela Igreja, de afastar os ouvintes de maus caminhos, que desviavam ou bloqueavam a porta do Céu. Porém, contudo, o que dizer dos bons caminhos? Como dizer que uma alma caridosa, que não consegue crer nas doutrinas cristãs, não vai para o Céu? Aqui não está assente que a caridade faz parte da polissemia de Jesus?

Maria chora na cruzO QUE É Jesus?… Veja que esta é uma pergunta tão problemática que jamais poderemos dar uma resposta nem simples nem completa, pois nada que dissermos do Nazareno poderá concluir alguma coisa, pois Ele não se contém em si. Assim, dizer que: (1) Ele é Deus (que é tudo), ainda é uma informação incompleta, pois só Deus entenderia, de modo inteiro e imediato, como uma expressão tão finita poderia abranger o Infinito. Dizer que (2) Ele é o Salvador, de fato, basta para localizar o foco central e a fonte de todas as salvações, mas é absolutamente insuficiente para contemplar a quantidade de condições que aquelas podem exigir, sob efeito das várias vertentes complicatórias em que as almas “se enovelaram” em seus respectivos desvios. Porquanto a complexidade da salvação acabou pegando carona na complexidade da perdição, e assim qualquer palavra poupada na resposta pode significar prejuízo muito maior que o não saber nada. Dizer que (3) Ele é o mais perfeito dos homens, ou apenas um homem (na exata expressão de sua humanidade), ou o maior de todos os santos, o maior mestre de moral, etc., tudo isso, em nada ajuda a diminuir o todo, a complexidade inextrincável, o mistério.

O QUE É Jesus? Existe alguma forma de responder isso neste Planeta? Creio que sim, mas é o tipo da resposta que só ocorrerá se tanto o ouvinte quanto o heroico explicador tiverem tempo suficiente para uma longa conversa (neste caso, melhor seria ler um livro ou uma biblioteca inteira, melhor dizendo), a qual terá que ter todos os requisitos de uma confissão em juízo (silêncio, concentração, educação, boa vontade, atenção discipular, conhecimentos multidisciplinares em ambos, etc., todas condições sine qua non para sua realização). E o que acabo de dizer aqui ainda deve ser entendido como um resumo de boa vontade para “salvar” a evangelização pós-moderna.

Finalmente, não se pode negar que as dificuldades no trato da mensagem salvífica gritam alto o extremo heroísmo e responsabilidade dos que Deus vocacionou para este fim. Entretanto tais fatores não poderão jamais justificar o não atendimento dos (pré-)requisitos necessários à iluminação dos caminhos percorridos no único Caminho, “condecorando” aqueles que por acídia, ignorância ou incompetência, promovem o reducionismo mortal na mensagem da salvação, com prejuízos eternos para as almas humanas. Se queremos servir a Deus e se, de fato, fomos chamados para a obra de porta-vozes de Jesus, não poderemos jamais omitir algum dado nas explicações ou negligenciar algum exemplo nas boas obras, porque aquelas eliminam bloqueios e estas provam (em quem ensina) que trilhar os passos do Salvador é uma boa ação possível a qualquer homem.

 

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