Os dois Jacks que amamos

Correndo o risco de sermos tratados como idólatras pela velha mentalidade reformada que vê qualquer louvor ao semelhante como uma recriação do politeísmo (coisa que Lewis criticou no “Mere Christianity”), esta Escola procura aqui esclarecer de vez esta questão…

Quanto mais o tempo passa e nos aproxima do fim de todas as coisas, mais temos ampliada a certeza de que CS Lewis é a ponta do iceberg de um colossal universo de mistérios, sobre os quais ele próprio teve ingentes dificuldades de explicar e explicitar. Na verdade ele representa duas realidades distintas, mas intimamente ligadas entre si e entre ele e Deus. Refiro-me primeiro à realidade pessoal dele (sua profissão, amizades, família, casa, patrimônio, situação financeira, etc) e segundo, à realidade espiritual dele, da qual pouco se conhece (a julgar por até onde ele foi), apesar de tantos amigos íntimos e inteligentes que tinha.

Do primeiro Jack não iremos tratar aqui. Cremos que para nosso propósito, seria assim como “chover no molhado”, pois até hoje é aquele Jack que todos descrevem e é sobre ele que foram escritos dezenas, senão centenas de livros. Porém falar sobre o segundo Jack é raro e muito mais difícil, e é justamente nesta matéria que cremos poder servir melhor a Deus e aos lewisianos deste país.

2 Lewis que amamosSeguindo certa parte da doutrina cristã chamada “Tricotomia”, temos que adiantar que não é possível falar do segundo Jack sem pontuar que o ser humano é constituído de 3 (três) realidades distintas, que deveriam ser, além de distintas, unidas, assim como é a Santíssima Trindade. Com efeito, as três partes ontológicas do Homem, seu corpo, sua mente e sua alma (que Paulo chamou de corpo, alma e espírito – I Ts 5,23: Id, Ego e Superego?), tornam a Ontologia, a Teologia e sobretudo a Antropologia Filosófica assuntos por demais complexos, se alguém quiser chegar à realidade última ou mais profunda do ser humano. É neste sentido que iremos, no presente artigo, desenvolver o nosso argumento a respeito daquele lado mais obscuro, digamos assim, de CS Lewis, aqui chamado de “2o Jack”.

Em seu lado conhecido (o 1o Jack), Lewis já possuía certas características que o distinguiam, por assim dizer, da maioria dos mortais terrestres. Refiro-me à sua prodigiosa inteligência e à genialidade de seu cérebro na área relacionada ao domínio da linguagem e da imaginação (aliás, uma coisa não pode prescindir da outra, segundo tudo o que descobrimos estudando outros gênios escritores). As mais recentes pesquisas da fisiologia cerebral dão como certo que quanto mais desenvolvida ou bem dotada for a área da linguagem, maior capacidade tem de fazer abstrações e com isso abrir o “horizonte visual”, que acaba parecendo, para os cérebros comuns, mero exercício da imaginação, embora uma coisa sirva à outra e vice-versa. Ou seja, por conhecer demais a “arte de comunicar com perfeição” aquilo que lhe chegava à mente, abriu a imaginação ao extremo de adentrar, com ele, nos mundos invisíveis daquela, cuja realidade é, segundo ele mesmo pôde comprovar, maior e mais completa do que as “tênues paragens” onde perambulam os corpos de matéria tridimensional (que nem chegam a ser “sólidos”, como Jack revelou no livro “The Great Divorce”).

Até as amizades do 2o Jack, a bem da verdade, eram diferentes das amizades do primeiro, e ele pareceu nunca tentar ter com estas certas “interferências” ou maiores intimidades do que as que as relações sociais geralmente permitem, à exceção, talvez, de Joy, sua mulher, e Warnie, seu irmão (e iniciamos tocando no assunto ‘amizades’ por estarem elas bem no centro da questão dos dois Lewis, e sem as quais o 2o Jack continuaria, a rigor, um nobre desconhecido). Já o 2o Jack relacionava-se com outros “eus” de modo diferente, tão diferente que caberia talvez algo como “não-terrestre” ou “além-mundo”. E Lewis soube, como ninguém, comunicar essas realidades do Além, de um modo, digamos assim, “extra-sensorial” ou “extra-situacional”, de tal maneira que o infinito fosse transmitido “todo contido nas partes”, e as partes fossem entregues com “criptogramas” somente detectados por outras mentes igualmente antenadas no Além-mundo que ele “canalizava”. No artigo “Transposição” foi onde ele mais revelou acerca dessa “canalização do infinito”.

Difícil de entender? Certamente. Como Arthur da Távola disse, “o sobrenatural escondeu-se dos mortais e criou uma barreira de silêncio através da qual somente os ‘adultos’ captariam algum som inteligível, tratando os demais como crianças a quem não se pode contar certas coisas”… E Lewis viu isso muito bem. Porém pensar sobre como Jack extrapolou a realidade tridimensional e principalmente por que Jack manteve sua extrapolação sob o manto do mistério, isto sim é tarefa por demais complicada e talvez “proibida” para bom entendedor. Deus queira não estejamos aqui em flagrante desobediência. [Na verdade as coisas descobertas a partir da exegese lewisiana mais profunda mostraram um planeta tão ameaçado e uma realidade tão aterradora que qualquer tentativa imperfeita de contar os fatos poderá pôr em risco o já delicado equilíbrio social da modernidade, podendo ocasionar inclusive a perda definitiva daquilo que pretendia resgatar].

Com efeito, o mundo está mergulhado num drama colossal, de proporções e efeitos tão devastadores que é muito provável que mantê-lo inalterado (ou “congelado”) seja melhor opção do que escancarar a Verdade, tal como não tentar remover um motoqueiro acidentado pode salvar-lhe a vida (em caso de pancada na coluna cervical), como recomendam os paramédicos ou “anjos do asfalto”. Porém os paramédicos sabem fazer a remoção (imobilizando a coluna), de um modo que o paciente pode chegar ao hospital e conhecer outra realidade: a de que receber uma 2a chance impõe um cuidado maior e uma grata alegria de viver.

Isto posto, estamos aqui fazendo o esforço de crer que podemos servir de paramédicos para resgatar os acidentados do caos, mas cuidando para que o status quo não seja alterado por pessoal não-qualificado, fazendo a emenda sair pior que o soneto… O que fazer, então, já que Jack viu o acidente, viu a coluna vertebral afetada “e não fez nada”, esperando os paramédicos do Senhor? Ainda é hora de esperar? Se Jack estivesse entre nós, ele ainda esperaria? Sim: o primeiro Jack esperaria. O segundo talvez não.

Mas então: chegou a hora de escancarar a verdade? “Remover o paciente”? O que pensar?… Nós queremos crer que sim.

Em primeiro lugar, o 2o Jack fez uma amizade toda especial com alguém do tipo “imortal”, ou que “foi imortalizado pelo Amor de Deus”, por assim dizer. Isto pode implicar, sem dúvida, em certa decepção de resultado prático, para quem esperava que CS Lewis fosse o último estágio da “canalização” antes do próprio Deus. Mas não foi. Deus queria e sempre quis escancarar a Verdade ao mundo, e nunca encontrou a ocasião ideal (ou “o homem certo na hora certa”) para fazê-lo, ora pela alienação e mediocridade dos receptores, ora pela inadequação estratégica perante as forças de satanás. [E isto é muito compreensível e até comum na história do povo de Deus, pois em Israel também durava às vezes séculos para aparecer alguém cujo coração Deus pudesse usar como rádio-escuta e porta-voz de guerra. Só que o tempo decorrido de Cristo para cá, sem a vinda de um Nazireu(1*) legítimo, promoveu um esvaziamento completo do espírito humano, uma queda acentuada da moralidade e uma atrofia da consciência, a ponto de que um último profeta encontraria muito maiores dificuldades em iluminar o povo, mesmo o chamado “povo de Deus atual”, aqui entendido como os cristãos].

Em segundo lugar, Lewis recebeu do Além instruções rígidas de eclipsamento do nazireu, de tal modo que aqui caberia a expressão “morrer como pecador para proteger o santo”, a qual Jack custou a engolir enquanto não presenciou as credenciais do santo. Isto significa que Lewis foi usado por Deus não propriamente como “canal de entrega da Verdade”, mas como escudo ou armadura e também como um eventual “bode expiatório” para quaisquer ameaças porventura endereçadas ao nazireu (tudo indica que qualquer outro profeta – qualquer um de nós – que quisesse levar adiante as palavras do nazireu, também iria ter que fazer o papel de Lewis, i.e, sofrer pelo santo).

Isto levanta um terrível problema. A saber: que Jack teria que ‘emprestar’ ao nazireu todo o prestígio e a credibilidade de CS Lewis, agindo inclusive, como última alternativa, na perspectiva de negar conhecimento e até concretude real para o seu “protegido”. I.e, Jack apareceria como o pseudo-autor da história (que seria na verdade um fato vivido por outrem), divulgando-a como mera criação de seu malabarismo imaginativo ou de sua invencionice mirabolante. [Todavia, até mesmo por esta ótica, este malabarismo foi tão longe, em sua detalhística indicial, que até os mais céticos ficaram em dúvida quanto a ter Lewis “inventado” tudo aquilo, até porque se o tivesse feito, o cético teria que crer noutra coisa ainda mais mirabolante, a saber: que Lewis tem uma inteligência sobre-humana ou no mínimo foi auxiliado por uma inteligência sobrenatural, além de onde jamais chegaram os maiores gênios da Humanidade].

Com efeito, ao adentrar apenas como narrador em fatos vivenciados por terceiros, Lewis então se transformou num “hall” de experiências insólitas e num canal de mensagens “extra-oficiais” (por assim dizer), tal como um repórter que fosse a uma guerra e pudesse estar com os dois lados em conflito e transmitir o fragor da guerra, sem se importar com a “organização didática” das mensagens captadas. Toda a bulha e o “tumulto” de informações chegariam nele e sairiam por ele sem ajustar-se às especificidades limítrofes da lei vigente, que aqui talvez pudesse ser chamada de “ortodoxia”.

Todavia, em terceiro lugar, fica claro ao longo da obra de Lewis que ele não apenas serviu como “mestre retransmissor”, mas de fato assumiu a condição de “aprendiz de feiticeiro”, dadas as suas íntimas ligações com os verdadeiros “Magos de Deus”, operadores da Magia Benigna que criou todos os mundos. Foi exatamente daí, de sua relação com os Magos, mormente com um Mago em particular (um nazireu legítimo), que Jack ocupou o posto de autêntico profeta pós-canônico.

Eis porque do 2º Jack se sabe tão pouco, ou apenas se imagina quando há este dom divino. Porquanto era no espaço sagrado entre as suas orações mais íntimas e as respostas de Deus que o Sr. Clive vivia seus momentos mais alegres e arrebatadores, e também os mais angustiantes, devido às ingentes responsabilidades que essa posição impõe aos verdadeiros profetas. Nem Warnie, nem Joy – e muito menos seus enteados – sequer imaginavam aonde o 2º Jack “andava(2*) em suas horas “solitárias” [nas quais ele foi informado de que “nunca menos só do que quando só”], apesar dos inevitáveis “vazamentos de indícios” que os caminhos do Mistério sempre deixam atrás de si… E os amigos e “estranhos” que por obra de “coincidências” eram apresentados em casa em ocasiões pouco freqüentes, nunca chegaram a formar qualquer célula social detectável, ou mesmo um clube ou círculo doméstico, o que significa que Lewis desempenhava outras “atividades” fora de casa ou extracurriculares, das quais talvez nem o Inklings tomasse conhecimento ou parte, ao menos, do todo. [Ocorria exatamente como ocorreria se Jack fosse um agente secreto do Governo, cuja profissão e identidade jamais são reveladas, nem mesmo aos mais íntimos familiares]. Porém tudo isso é perceptível, para quem tem olhos de ver, nas entrelinhas de seus livros mais “densos”, dos quais se soube que os perigos de uma exposição escancarada das peregrinações e obras do 2º Jack não apenas atrairia para ele inimigos sobre-humanos (de cujas reações Deus não poderia livrá-lo, como dita a “Lei de quem desafia o Senhor”), mas também atrairia a “inveja” e o preconceito de outros cristãos e até de cientistas, com os quais ele deveria manter sempre as melhores amizades e simpatias para futuras necessidades. Eis aqui, sem qualquer maquiagem, o 2º Jack exposto, no máximo de luz que é lícito focar sobre ele. Ora, se ao apóstolo Paulo não foi permitido falar do 2º Paulo (II Co 12,2-4), por que haveria hoje outro alguém a quem Deus daria essa permissão?…

Finalmente, a inequívoca constatação dos dois Jacks encontrados em CS Lewis, e sobretudo a hegemonia oculta do segundo sobre o primeiro, nos leva a crer que qualquer discurso “convencional” sobre Lewis deixará sempre algo a desejar ou algo mais em quem farejou tudo e tenha sido surpreendido pelos inquietantes “indícios” captados nas entrelinhas das “suas” histórias. O ar fica rarefeito pela escassez – ou asfixiante pelo excesso – de presença não-humana a espreitar por trás das palavras, e é deste “hall” que se vislumbra a única porta que a Revelação não abriu e o único caminho que iluminará toda a Casa.

Mas quem quer entrar nesta Casa? Quem quer ver pessoalmente o que o 2o Jack viu? O leitor quer ir além? Todavia, lembre: se responder sem pensar, pode correr os riscos que Lewis fez “das tripas coração” para evitar que outros corressem.

Coragem e boa sorte!

(1*) = O Nazireu era o “profeta-irrepreensível” para o povo judeu, porquanto já nascido como profeta, gerado por Deus com dons especiais de discernimento de espíritos, clarividência e predição (Nm 6; Jz 13,5-7 e Am 2,11-12), alcançava grande credibilidade por sua moral ilibada e seu coração extremamente caridoso para com os pobres. Quase todos os grandes mártires do Velho Testamento eram nazireus. No Novo Testamento, ficou claro que um verdadeiro Nazireu, como João Batista, recebe o Espírito Santo desde a concepção uterina (Lc 1,41), a missão pré-existente antes de sua concepção na mente de Deus e uma morte violenta em plena atividade missionária. Infelizmente, com sérios prejuízos à doutrinação dos evangelizados, o pré-conceito e a descrença na existência pós-canônica de nazireus tomou conta do Cristianismo, sobretudo na cristandade reformada.

(2*) = O verbo talvez não fosse “andar”, e sim volitar, voar ou tecnicamente “projetar-se”, sem excluir a reciprocidade implícita em cada jornada.

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