Uma justa reclamação dos ateus?

Breve revisão da explicação cristã para a aparente injustiça da ira divina no Velho Testamento, onde Deus parece não fazer qualquer “seleção” ao aplicar os seus castigos

Um estranho desdobramento das ações do Deus mostrado no Velho Testamento tem sido o pivô de uma das mais sérias e persistentes reclamações dos ateus e céticos do mundo, e os cristãos precisarão de muita fé, discernimento e conhecimento bíblico para ouvi-la e assimilá-la no seu coração, sem os prejuízos da ignorância dos descrentes. Trata-se do fenômeno teoricamente unilateral das vinganças de Deus que, contrariando a própria lógica de Jesus (e a evolução da compreensão da Justiça), irrompe em atitude aparentemente injusta por não ser seletiva, ou seja, por aplicar a inocentes as penas cabíveis apenas aos culpados. Os ateus então perguntam, com justiça: por que era coletiva a vingança da Justiça divina a um pecado individual?

Neste sentido, vê-se, ao longo do Velho Testamento, especialmente em livros como Isaías, Ezequiel e Jeremias, um Deus não apenas vingativo, mas cuja inteligência parece não distinguir justos e injustos (e assim saía a castigar os pecadores, desobedientes às suas ordens), aplicando toda a sua ira como que “espalhafatosamente”, sem critério, atingindo pessoas que não pecaram ou até povos e nações que nem sequer estavam presentes no momento da iniqüidade constatada. Mas será que as coisas são de fato assim mesmo? Vejamos duas respostas cabíveis ao argumento dos ateus.

O ARGUMENTO DA JUSTIÇA

Baseado na Carta de Paulo aos Romanos (Rm 3,10-12), que afirma e ratifica a lógica perfeita da Teologia do Mérito, na qual a Humanidade – como um todo, todos nós – tornou-se tão malévola que ninguém, absolutamente ninguém, merece qualquer consideração de Deus, a rigor, nem mesmo as mais “puras” criancinhas. Neste mister, parte da premissa de que a Humanidade NEM DEVERIA estar viva, sendo a nossa permanência na Terra um milagre de piedade e até uma incoerência da parte de Deus, que teria, aí sim, cedido a uma injustiça cósmica, ou seja, deixar viva uma raça tão maligna e perigosa para todo o cosmos. Portanto, uma vez que ninguém merecia estar vivo, então as penas aplicadas aos judeus rebeldes caírem sobre seus próximos (familiares, amigos e até nações vizinhas) aparentemente inocentes, seria o corolário lógico da Justiça Divina, que terminaria por erradicar todas as “ramificações” da maldade praticada, extirpando o conjunto do Mal que a gerou.

Interessante que este caso pode ser perfeitamente visualizado por um evento comum em nosso dia-a-dia: i.e, uma multidão de cupins que infesta nosso guarda-roupas e que combatemos com uma descarga de veneno, jamais nos levou a lembrar antes que naquela população de insetos haveria, certamente, algumas pobres “operárias” que não invadiram o móvel e que apenas estavam alicerçando a colméia, bem longe dali. Mas nós matamos todos eles sem lembrar das inocentes porque sabemos que cupins são uma praga, e que não há como dialogar com seus chefes, pedindo para só destruírem árvores secas, e não móveis! Cupins são terríveis, mal-ouvintes e odiosamente injustos, pois destroem móveis até de criancinhas!

E tem mais. O argumento não pára aqui. Veja: NINGUÉM é inocente de nada! Até no Novo Testamento, como resposta dos próprios apóstolos ao drama da perdição humana, a teologia cristã se encarrega de nos ensinar que TODOS NÓS, de qualquer faixa etária, estávamos não apenas presentes no momento da Queda de Adão e Eva (pecando junto com nossos pais), como também no momento da condenação de Cristo, gritando junto aos judeus: “Crucifica-O! Crucifica-O! Crucifica-O!”. Temos, portanto, culpa universal e multidimensional, no tempo e no espaço, pela tragédia humana neste planeta, inclusive pela tragédia do próprio Cristo, único inocente no universo. Isto prova que o veneno lançado sobre os cupins não atingiu inocente algum, simplesmente porque nenhum cupim é inocente.

Este, pois, é o raciocínio de Deus, com base na Teologia do Mérito. A Humanidade inteira não é flor que se cheire, e Deus não tem sequer esperança de diálogo ou, num apelo, vislumbrar qualquer mudança de atitude em nós. E quem discorda disso? Quem se acha fácil de mudar? Quem acata de bom grado um pedido de mudança nos seus velhos hábitos?… Assim, pois, eis que está posta uma das respostas para a acusação de injustiça divina nos atos registrados no Velho Testamento.

O ARGUMENTO DA IMPRECISÃO

O Velho Testamento é um livro judeu, escrito por judeus e influenciado pelo espírito judeu, em cujo sangue perpassa a índole mais vingativa da raça humana, e foi por isso que a etnia judaica foi a escolhida para ser o “saco de pancadas” de Deus, e exemplo para as outras raças. Todos nós estamos carecas de saber que, o melhor método de ensino é o exemplo prático, e isto se verifica sem exceção em todos os lares e escolas, onde, de um mal praticado por um filho ou aluno, só se tirará algum bem (ou bom proveito) se ele puder ser usado como exemplo ou ilustração para os outros filhos e alunos. Ou seja: além da maldade do mal, ele será inútil se não puder, pelo menos, servir de lição para evitar a sua repetição por outras pessoas, e a lição é a única coisa boa que o mal possui. Só os imaturos não usam os erros do passado para se corrigir e se tornar uma pessoa melhor.

Os judeus foram o exemplo da maldade humana, e Deus os usou para mostrar como a perversidade de um povo (ou melhor, de uma pessoa) pode levar a outras crueldades piores, gerando uma cadeia de contágio capaz de degenerar a todos e pôr em risco até a sobrevivência da sociedade. Se os males praticados pelos judeus não fossem jamais punidos, esta impunidade transformaria o mundo num inferno sem fim, levando à extinção da espécie que os ateus terminariam por atribuir a uma vingança de Deus.

E não pára aí. Um dos piores erros humanos, particularmente cometidos pelos judeus levitas (fariseus e saduceus, no Novo Testamento), é a questão da conversa fiada, ou da mentira, ou da imprecisão da notícia, motivada por interesses escusos. Exatamente por seu caráter rebelde e vingativo (que eles nem se esforçam para esconder), os judeus semearam inimigos mortais ao longo de sua história, e não é à-toa que eles foram os responsáveis diretos pela crucificação de Jesus. Para manter a aparência de “eleição divina” por seu monoteísmo heróico, eles precisaram condenar TODAS as outras religiões do mundo como heresias e inimizades a Deus, e para isso criaram todo o esquema de entronização e divinização do Judaísmo, passando esta mensagem para os povos vizinhos. Com esse esquema montado, era necessário gerar “temor santo” nas almas não-judias, pregando um Deus-que-se-vinga-dos-inimigos, capaz de atrair todos os que queriam ver seus inimigos vingados, bem como deixando nos inimigos o pavor de cair nas mãos daquele Deus-revanchista. Esta dupla estratégia tanto conquistava mais povos ao Judaísmo, como gerava mais ódio aos/nos inimigos de outras religiões, cujas rebeliões e batalhas precisavam ser vencidas por um Deus-de-braço-forte, gerando “hegemonia teológica” para o Judaísmo.

Neste clima da estratégia de conquista e no esquema de aterrorizar os inimigos, não é de se admirar que os escribas judaicos tivessem feito, eles mesmos, determinados acréscimos aos fatos verificados nas inúmeras batalhas étnico-religiosas que eles travaram na antiguidade, botando mais sangue em ferimentos superficiais e mais vítimas em contagens mínimas de mortos. Com isso, as suas toscas vitórias em batalhas comuns da época, ganhavam o peso de um estrondoso derramamento de sangue e de uma quantidade incontável de cadáveres, o que ao final tanto ajudaria a afastar os inimigos quanto a fortalecer a fé judaica (tanto dos judeus piedosos civis quanto dos soldados hebreus em combate).

Não estou com isso dizendo que Deus não contribuiu para levar Israel a inúmeras vitórias e que Javeh não interfere a favor dos seus filhos. O que estou dizendo é que boa parte das guerras épicas e das carnificinas abomináveis descritas no Velho Testamento (sobretudo quando a descrição tenta expressar – forjar – a própria voz de Deus mandando matar criancinhas e mulheres grávidas) podem ser atribuídas à pena dos escribas, que podem tê-lo feito seguindo ordens de seus chefes levitas ou militares. Seguramente Deus não mandaria matar mulheres grávidas e criancinhas, principalmente se elas não estavam na guerra e eram, assim, “inocentes” integrantes de povos cujos exércitos lutavam pelo poder ou pela terra; até porque tais mortes nada acrescentariam de útil, seja para as vitórias judaicas ou para as possíveis lições teológicas de Deus.

Com efeito, um Deus que tivesse sido no passado o principal responsável pela mortandade e pela barbárie, jamais conseguiria uma boa imagem de Deus-misericordioso na pessoa de Cristo, e todo o discurso de Jesus acerca do amor ao próximo ficaria comprometido, para todo o sempre. Assim, pois, temos que insistir não apenas no caráter magnânimo de Deus, como na sua infinita presciência, que inevitavelmente preveria o dano irreparável no seu marketing evangelístico, bem como na Sua própria auto-imagem, se Jesus tivesse que explicar as inúmeras carnificinas que seu “pai-amoroso” autorizou no Velho Testamento.

Finalmente, ao chamar este de “Argumento da Imprecisão”, em relação à possibilidade de os judeus haverem registrado os fatos com os acréscimos particulares dos seus interesses proselitistas, alguém poderia alegar que se Deus é onipotente, por que não deixou um registro perfeito, onde todos os dados fossem precisos e verificáveis?. O problema é que um registro perfeito teria que ser sobre-humano, e assim a própria natureza do registro comprometeria a crença-cega que Deus precisa para colher a confiança necessária, única virtude que não pode ser delegada nem temerária, porquanto não existe uma meia-confiança ou uma mini-confiança. Ou se confia ou não se confia. Se a confiança era a pedra-de-toque ou a chave para alavancar nossas almas ao patamar dos anjos (e assim sermos salvos), então os registros toscos da humanidade produziriam uma fé muito mais louvável e valiosa, já que ultrapassou a barreira da insegurança das descrições e transcrições humanas. É isso.

Aí estão, portanto, os dois argumentos mais imediatos para dar resposta à justa reivindicação dos ateus acerca da “maldade de Deus”, e os crentes fariam bem em estudar melhor as teologias do Mérito e da Retribuição, não deixando de lado as oportuníssimas explicações de CS Lewis para todo o corpo de doutrina cristão. Não estou apostando, aqui, que tais respostas são suficientes para esmaecer e muito menos erradicar o ceticismo dos ateus, e o próprio Lewis os respeitava justamente quando se aferravam a bons argumentos lógicos. Pelo contrário, duvido até que no meio dos meus próprios correligionários não haja muitos que se sintam confortáveis no discurso ateísta (Lc 18,8). Portanto, e desgraçadamente, se a pregação cristã não contemplar as inquietações e dúvidas levantadas pelo materialismo pós-moderno, penso que toda a Homilética atual fracassará.

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