Uma resposta que só Deus poderia ter dado

No auge da discussão sobre a falibilidade e o sofrimento humano, CS Lewis replica uma pergunta que só o próprio Deus poderia responder, e prova a sua extemporânea canonicidade.

O pessimismo pode reinar livre neste mundo, e com aval da lógica e da inteligência mais avançada. E por que? Porque todas as alternativas apresentadas para explicar a falibilidade humana e as deficiências gritantes da vida tridimensional esbarram na constatação óbvia: o universo de 3 dimensões é tosco, precário e até mesmo vil. Entretanto encontramos nele criaturas como nós, que conhecem a sua existência, identificam a própria consciência individual, curtem a beleza, sentem o prazer, sofrem dores e correm riscos enormes, inclusive de perda da sanidade mental.

E pior: com a pouca inteligência de que dispõe, o Homem pode questionar tudo, inclusive os porquês de sua própria existência cheia de limitações, ou de sua criação propriamente dita, ficando a mercê dos ouvidos de um universo que aparentemente não tem boca para responder. Note: aparentemente. Porquanto “o universo” deu ao homem (mesmo usando só a ciência para saber) a capacidade de pensar sobre si mesmo e sobre o seu todo, como se tivesse guardado para o futuro a resposta que dependeria da amizade da criatura com o suposto Criador, por assim dizer (para usar uma linguagem simpática aos céticos).

Mas a resposta já chegou.

Não regido pelo tempo dos homens, o Criador jamais estabeleceria uma Lei que não tivesse validade eterna, por Sua própria eternidade; e isto traz a inquietante complicação da velha questão religiosa: é que as leis antigas (como as do Velho Testamento, p. ex.) nunca ficariam revogadas, já que a rigor o seu tempo nunca passou. Com leis eternas, tudo o que foi determinado antes da criação da Humanidade está em pleno vigor, e assim ficará para sempre, já que a Perfeição não faria uma lei que precisasse de correção (isto ainda é o raciocínio simpático aos céticos).

Logo, dizer que a resposta já chegou e que ela também é canônica (mesmo tendo sido dada por CS Lewis, quase 2.000 anos após a canonização oficial), não passa de uma lamentável limitação da linguagem humana, porquanto ela sempre foi canônica e a Humanidade nunca a teria captado antes, precisando do nascimento de uma mente como Lewis para colhê-la da mente de Cristo. Assim, nada há de incorreto ao afirmar a sua canonicidade, pois esta credencial não se deve a Lewis, e sim à eterna comunicabilidade de Deus.

Qual foi a resposta que Lewis captou e divulgou?

Em um de seus livros (“Cristianismo Autêntico”) no auge da discussão sobre a falibilidade e o sofrimento humano (Livro 2: “Em que crêem os cristãos”; 3-‘A Alternativa Surpreendente’; quarto parágrafo), CS Lewis replica uma pergunta que só o próprio Deus poderia responder, e dá a resposta que a cristandade adicionaria ao Cânon, se se lembrasse da perenidade que rege todas as leis de Deus. A pergunta (que todo ateu faria, se chegasse a tal altura de raciocínio) é: “Por que Deus fez o homem de material tão ordinário que se estragou?”… – Ou se, após questionar e perfeição de Deus e descobrir a insistente errância de cada homem e de toda a Humanidade, o Criador não tivesse resposta para explicar porque fez a raça humana tão frágil e deficiente…

A resposta é uma sacada exponencial: “Talvez nós tenhamos sido o último experimento de redução da perfeição consciente!”… – O que significa isso? Voltemos os nossos olhos no tempo.

A Criação teve início. Todas as obras partiam da imaginação de Deus, a perfeição absoluta. A guisa de tornar a informação mais didática, imaginemos nós uma sucessão de operações para formar uma série de seres vivos, escalonados do mais elevado (ou mais próximo da perfeição) ao menos elevado ou menos perfeito, indo a tal série do mais portentoso arcanjo ao mais diminuto verme microscópio: não é necessário aqui, para o presente raciocínio, emitir qualquer juízo moral, porque a noção exigida requer atenção apenas para o escalonamento ontológico, e já fornecerá aquilo que o argumento precisa. No mais, é lembrar que a série aqui se refere apenas aos seres vivos e portadores de alguma consciência ou pré-consciência.

Visualizemos primeiro os extremos. A primeira obra é a mais perfeita (correspondendo, por assim dizer, a 99,9999999999%… da perfeição de Deus) e a última é a menos perfeita, equivalendo à criação de um ser vivo cuja mente (digamos assim) é tão insignificante que nem consegue se comunicar com seus próprios semelhantes microscópicos, mesmo ao nível mais instintivo. Pois bem. Onde se localiza o Homem?

Aproveitando a geografia do verbo localizar, o Homem se localiza “ao Norte” com os querubins, “ao Sul” com os macacos, “a Oeste” com os peixes e “a Leste” com as aves. Dos anjos menores ele possui uma mente abstracionista o suficiente para conversar com seres “invisíveis”, e deles ouvir respostas. Dos macacos ele possui a genética e a operacionalidade, constituindo uma ontologia ao mesmo tempo “líder e serviçal”, mas desperta o suficiente para realizar as tarefas do seu cotidiano animal. Dos peixes ele possui a fertilidade, a relação com a água e sua necessidade dela. Das aves ele possui o sonhar e o desejo de voar, na metáfora da chamada para a perfeição.

Na escala da Criação, o primeiro ser abaixo do Homem não teria mais consciência “desperta” (por assim dizer) e precisará do Homem para alcançá-la. Ou seja, o primeiro macaco esperto que se situa logo abaixo do Homem, precisará deste para chegar a ser Homem e assim sucessivamente. O raciocínio é válido para a sua realidade oposta, i.e.: o primeiro ser acima do Homem teria uma melhor consciência ou a consciência mais “desperta” (por assim dizer) e será ele o próximo estágio do Homem ou, melhor dizendo, será este o responsável por conduzir o Homem aos estágios seguintes de sua evolução.

Noutras palavras: (1) do Homem para baixo a consciência vai sumindo até chegar à escuridão ontológica daquele verme que mal se comunica instintivamente com outros vermes. Os cães então seriam animais muito nobres e elevados, pois não apenas têm consciência de si e de seus semelhantes, mas são capazes até de se comunicar conosco. As baratas seriam seres quase obscuros em termos de consciência, pois mal conseguem comunicar-se com as outras baratas, exceto em seus impulsos instintivos mais primitivos. (2) do Homem para cima, a consciência vai crescendo até chegar à luz da compreensão angelical, capaz de sacar toda a mecânica da Criação e os planos da mente de Deus, dos quais só há pontos obscuros quando raramente e se desejados pelo próprio Deus. Os querubins e serafins seriam os seres em escala seguinte à consciência humana, embora isto não signifique que entre homens e anjos não haja uma série de seres intermediários, como os elementais, os “suprafísicos”, os “hiperbóreos”, os zeróides, os “não-sei-o-quê” e outras criaturas mais que a imaginação conceber ou até seres inimagináveis.

O quadro iluminou-se. Agora podemos retomar a pergunta: “Por que Deus fez o homem de material tão ordinário que se estragou?”… E ela agora não faz mais sentido. Porquanto Deus não fez o Homem de material tão ruim que se danificou pelo uso, mas sim que Deus experimentou uma obra de criação que conduzisse a perfeição do seu mais alto patamar ao mais baixo, ou até que ela quase nem se parecesse mais perfeição, por assim dizer; porque a perfeição é perfeita até quando se desfaz de si e procura multiplicar-se redutivamente até onde chegaria sem extinguir-se em falhas irreparáveis! (No pensar oposto, para o alto ela não poderia ir mais, pois, por definição, a perfeição é o limite de si mesma).

Logo, no ponto onde a perfeição alcançou o nível do Homem, criado livre e consciente, houve uma decisão qualquer da criatura que a danificou e influenciou negativamente a parte de sua perfeição que guardava poderes cósmicos. Vendo Deus que o Homem, com a consciência estragada e mantido livre com aqueles poderes, poderia produzir efeitos destrutivos e ameaçadores de outros seres, “aprisionou” o Homem em suas limitações básicas, a saber, restrito ao Planeta Terra, às precariedades da natureza animal e ao espaço tridimensional.

A criação, pois, era e é um risco inesgotável, enquanto pressupor a feitura de criaturas livres e com livre-arbítrio eterno, e por isso o Homem não foi o único ser a cair. Antes dele, e no elevadíssimo patamar dos arcanjos, uma outra criatura caiu e contaminou muitos outros, formando uma rebelião tão perigosa que precisou ser aprisionada aqui na Terra, junto com os mais frágeis seres na escala da perfeição, e de quem Deus pressentia uma possibilidade grande de influência da mente angélica.

A pergunta “Por que Deus fez o homem de material tão ordinário que se estragou?” nem cabe mais na sequência do raciocínio, pois se um ser angélico caiu, sendo quase perfeito, então o buraco é mais embaixo e a razão da Queda não está na qualidade do material com o qual fomos criados, e sim na nossa má escolha consciente, que deliberadamente preferiu “experimentar” o caminho sem volta da vida livre sem Deus, julgando o Pai-criador um estorvo, ou um irritante “desmancha-prazeres”. Os estragos verificados em nossos corpos no decorrer de nossa História não são resultado de má qualidade de nossa matéria-prima, mas sim da má qualidade de nossa escolha, que conseguiu o milagre às avessas de acreditar que a vida longe da perfeição absoluta poderia ser de alguma forma compensada por nossa pífia perfeição, alcançada bilhões de degraus abaixo do ponto onde o Criador queria que chegássemos.

Isto certamente não é a resposta final para seres que se imbecilizaram tanto por livre e espontânea vontade, que nem mesmo a explicação de Deus seria aceita. A última esperança é que a sugestão de leitura dos livros de Lewis seja seguida, pois não há na Terra nada que explique melhor o quadro todo, e nem os autores da Bíblia chegaram a tanto. A perfeição viu que para (re)alcançar as criaturas distantes era preciso um Homem quase perfeito atuando em pleno Século XX, para que sua explicação perfeita encontrasse uma boa vontade qualquer, livre, ainda que moribunda. Se estas últimas palavras forem apenas um sermão aos peixes, a perfeição poderá contar, pelo menos, com a minha boa vontade.

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