A fragilidade da alegação de embasamento bíblico

Por que toda argumentação contrária à liberdade de interpretação está sempre atrelada a uma interpretação particular de um credo ou denominação auto-eleita “apta” para oficializá-la?

Não é sem razão que muita gente que poderia hoje está dentro do aprisco do Cristianismo se encontra lá fora, sem nenhuma igreja, “sem religião” e às vezes até sem fé. Pelo contrário; são almas que podem ter visto todas as teses e antíteses relativas às doutrinas cristãs e ter concluído delas aquilo que os credos oficiais impuseram como “intocável”, ou verdade perfeita, como se o próprio Deus tivesse deixado a Sua Revelação sem a menor necessidade de estudo teológico. Eis aqui um problema ingente e intrincado, cuja solução talvez possa, a rigor, nem sequer existir. Pior, este parágrafo certamente não serve de introdução para muitos leitores aos quais o artigo é dirigido. Mas deixemos aqui ficar, pois pode servir numa releitura futura.

Pois bem. Temos pesquisado dezenas, senão centenas de autores, pastores e teólogos cristãos, notadamente os de influência reformada, nos quais percebemos a exaustiva repetição de um velho argumento contra a liberdade de interpretação, o qual cai por terra no exato instante em que entre eles mesmos alguém fala diferente, como se a palavra do grupo fosse sempre a “oficial”, ou como se o fato de alguma crença ser majoritária desse a ela qualquer garantia de exatidão para com aquilo que ela comunica. O argumento frágil e repetitivo é aquele que impõe a crença de que “determinado ponto doutrinário não tem base no texto bíblico”, o qual está diretamente associado (ou dela deriva ou a ela conduz) à noção compulsória de que “a Palavra de Deus não provém de interpretação particular”, como se isso significasse alguma coisa “teologicamente segura”, ou que não constituísse uma tremenda armadilha contra qualquer grupo, já que pressupõe a existência de uma só fonte confiável (cuja defesa imputa num sistema semelhante ao engendrado pela Santa Inquisição).

Portanto, se fosse assim, QUAL grupo mereceria confiança? Ou qual denominação seria ou estaria mais fiel à interpretação perfeita? (Se é que esta existe). Se apenas uma única interpretação é viável dentro das Escrituras, por que uma denominação que nasceu quase 1.500 anos após a Ressurreição estaria interpretando com perfeição a sã doutrina? Ou por que uma denominação que nasceu com um imperador romano, 300 anos após a Ressurreição, teria a hermenêutica divina? Ou mesmo por que a interpretação das próprias comunidades de seguidores dos apóstolos seria perfeita, quando a “imperfeição visual” se deve às deficiências inatas dos próprios sentidos humanos?…

São perguntas cuja resposta impõe uma parada no argumento, após a qual uma revisão de conceitos se faz absolutamente necessária, colocando homem a homem face a face diante de Deus, na constatação nua e crua da falibilidade humana, que não apenas atinge aos 5 sentidos e à habilidade de interpretar, mas à própria REDAÇÃO ORIGINAL das Escrituras, que também foi executada sob a égide das falhas típicas das condições terrestres.

Noutras palavras, o que se deveria pensar era que, após a Queda da Humanidade em Adão e Eva, a desgraça que tomou conta de tudo foi tão avassaladora que roubou do Homem a própria “condição” de alcançar a Verdade, e quando Deus tentasse esta nos passar, encontraria, Ele mesmo, todo este labirinto de problemas, até certo ponto insolúveis, enquanto dado transitável pelo ambiente tridimensional em que vive o seu público-alvo. I.e., que se o próprio Deus saísse pelo mundo, em carne e osso, a ‘evangelizar’ com “aquilo que sai da boca do Senhor”, Ele mesmo encontraria as dificuldades que qualquer pregador encontraria, a saber: os ouvidos que não ouvem direito, as mentes que não interpretam direito, a linguagem humana que não é capaz de comportar todos os meandros da Revelação, e, ao final, a própria mente dEle, cuja transformação (via Transposição) em mente finita acabou por obrigá-la a uma limitação irreparável, já que há partes da Revelação que só uma Visão Perfeita poderia enxergar. Shakespeare deixou um conceito preciso acerca deste problema que atingiria o próprio Deus, falando da “impossibilidade de transmissão da experiência individual”.

Isto posto, o que estamos dizendo aqui é que todos nós (a Humanidade inteira) deveríamos nos dar por satisfeitos com uma visão reduzida da Revelação, não apenas porque cada um de nós é limitado em corpo, mente e alma, e produzimos um Livro de Revelação igualmente limitado, mas porque o próprio Deus nos limitou e também SE limitou às deficiências de uma criação minúscula, conquanto assim o desejasse para completar uma longa lista de criaturas ao seu redor, alinhadas desde as categorias mais inferiores até as mais elevadas, qualitativamente falando. E mais, o momento onde Deus mais se limitou foi justamente quando assumiu o corpo humano, ou melhor, a natureza tridimensional, dignificando-a sim, mas limitando-se a ela, e só ensejando um crescimento maior numa formação posterior ou quando a jornada de cada um ascendesse às dimensões superiores de seus outros reinos, nos quais só então veríamos com perfeição (releia I Co 13,12). [Ademais, lamento informar que o que acabei de explicar não passa de um tosco resumo, tosco não apenas por advir de uma mente limitada como a minha, mas por estar sendo veiculada por linguagem humana – tão deficiente quanto – e direcionada a ouvidos igualmente limitados].

Neste espírito, se meu argumento ficou entendido e aceito, agora podemos analisar porque são tão incongruentes e inúteis as palavras daqueles que alegam falta de base bíblica para denegrir uma interpretação “diferente” daquela que sua mente está acostumada a ouvir (a de seu pastor ou igreja), já que a “Falibilidade Geral do Sistema Terrestre” introduz em TODA conversa as deficiências das conversas alheias, e assim a velha alegativa de “interpretação pessoal” se volta contra seus próprios alegadores, nivelando todas as almas no mesmo calabouço da desordem mental e da culpa diante de Deus, único que pode julgar aquilo que foge ou não do conjunto de Sua Verdade Absoluta.

Tudo isto está sendo dito porque tivemos a oportunidade de constatar aquela velha alegação endereçada a um cristão contra quem nada pode ser alegado, sobretudo no que diz respeito à capacidade de interpretar as Escrituras, uma vez que ninguém como ele foi tão “agraciado” por uma visão acurada e profunda em matéria de hermenêutica espiritual, como muito bem atestam todos os que com ele conviveram e leram. Refiro-me ao escritor e professor CS Lewis, cujas obras abrangem praticamente todos os aspectos da teologia, embora ele, pessoalmente, nunca tenha feito um curso de teologia, ordenado ou não, até onde fui informado. E vou me ater à crença dele no caráter resgatador da Missão de Cristo, no sentido da “paga” pela recuperação de direito sobre as almas humanas.

No livro “O Evangelho de Nárnia”, organizado pela brilhante mestra e escritora Gabriele Greggersen, um de seus autores (Carlos Caldas) expõe as teorias válidas a respeito da Expiação, e ao final reconhece que a visão de Lewis é a de que “Aslam pagou o preço do resgate de Edmundo” como uma reparação de um direito da feiticeira-branca às almas dos traidores, num paralelo com o direito do diabo sobre as almas humanas. E é isto mesmo que o livro/filme “O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa” mostram, ou seja, que Cristo (atente que Aslam se chamou de Cristo no livro ‘Viagem do Peregrino da Alvorada’) pagou o nosso resgate por um direito adquirido de Lúcifer sobre as almas perdidas, com base na Lei antiga do universo, a qual dava ao diabo o direito de governar sobre Tellus e sobre tudo o que Tellus produzisse. [Lúcifer adquiriu tal direito ANTES de se tornar o diabo, quando o Criador distribuía seus bens e propriedades aos seus auxiliares (arcanjos e anjos-construtores), os quais recebiam, pelo seu bom caráter, imensas regiões do Reino para governar, cuidar e aperfeiçoar. Naquela ocasião, Lúcifer teria recebido a Terra e tudo o que ela produz].

Com efeito, pode-se notar que Deus não deve nada ao demônio (como não devia em Nárnia), e sim, à Lei Antiga, que Ele mesmo legislou, antes que os anjos maus se rebelassem. Assim sendo, como o direito sobre a produção dos planetas já estava posto muito antes da rebelião, as almas que nascessem nos planetas seriam propriedade dos seus anjos-governantes, tal como as almas dos malacandrianos são propriedade de Oyarsa no livro “Longe do Planeta Silencioso”. Logo, se Deus quisesse resgatá-las, teria que satisfazer à velha Lei, e esta reza que o sangue dos pecadores só poderia ser pago por sangue puro. Eis aí a razão precípua da crucificação e da expiação.

Pois bem. O problema é que o sr. Carlos Caldas, conquanto seja um escritor bastante preparado e culto, envereda-se pela velha alegação de que “não há base bíblica para se admitir o direito de Lúcifer sobre as almas”, como se CS Lewis tivesse uma deficiência visual perceptível, ou como se qualquer um de nós tivesse capacidade para enxergar ALÉM de Lewis! Este é o ponto. Todavia, digamos que a visão de Jack seja tão deficiente quanto a nossa ou quanto a do citado autor (inferior eu não acredito que ele ouse alegar) e que teríamos autoridade para duvidar de Lewis. Ok. Porém vamos verificar se não existe mesmo base bíblica para se afirmar a crença de Jack no caráter resgatatório da Crucificação. Vejamos.

Num estranhíssimo trecho do Novo Testamento, são Judas diz que certa ocasião o arcanjo Miguel lutou contra o diabo pela posse do corpo de Moisés (Judas 9). Por que cargas d’água um anjo de Deus teria que lutar (contender) contra Lúcifer pelo corpo de um ser humano, se este homem não tivesse estado, até o fim de sua vida física, atrelado ao cárcere terrestre de satanás da Lei antiga? Não é muito mais lógico supor que o diabo, eivado do seu orgulho bestial, não estava tentando MANTER o direito sobre o corpo de Moisés, já que durante tanto tempo o teve como prisioneiro? Ora: demônios desobedecerem leis é fácil de explicar; mas anjos não. A lei que antes da morte dava direito a Lúcifer, encerra-se com a morte e portanto somente numa guerra o diabo poderia tentar reavê-lo. Mas o anjo que foi defender o corpo de Moisés estava CUMPRINDO a Lei, ou seja, resgatando para Deus os restos mortais de um grande servo do Senhor, por cuja morte tinha todo direito de não mais estar preso a Lúcifer. Certo? Não fica bem claro assim?…

No episódio da Tentação de Jesus, nosso Senhor jamais negou as palavras de Lúcifer quando este alegou possuir TODOS os Reinos do mundo e tudo o que o mundo PRODUZ. Observe o leitor mais atento o seguinte: “como a Missão de Cristo poderia ter todo o valor inefável que possui, se a Crucificação tivesse ido buscar almas ‘neutras’ (ou ‘sem dono’), ou se seu dono fosse o Pai celeste? (que é Ele mesmo)” – Atente então para o fato de que toda a obra da Salvação ganha um valor incalculável JUSTAMENTE por exigir de Deus o pagamento por aquilo que não mais lhe pertencia, obrigando a uma tarefa extremamente dolorosa e arriscada, a saber: reduzir todo o seu poder, descer até um planeta imundo como o nosso, nascer em condição de extrema pobreza, viver uma vida de sacrifício e perseguição, ser rejeitado pelo seu próprio povo, ser traído por um de seus próprios apóstolos, passar por uma via dolorosa, ser esbofeteado, cuspido, humilhado e finalmente crucificado! Não é? Então, será que a obra de Deus teria tanto valor se tudo isso fosse feito em busca de coisas ou pessoas que já lhe pertenciam? Ou seja, se a Lei cósmica já lhe desse direito sobre elas?

Eis a chave da questão. A Suprema Reivindicação, o Magnânimo Milagre e a Infinita Graça se compõem de tudo aquilo que a decisão de Deus teve que enfrentar para recuperar as almas que Ele havia perdido em Adão e Eva; e se assim não fosse os demônios teriam, para sempre, motivo para propalar que a obra salvífica foi chocha, covarde e ordinária, pois Deus teria apenas buscado o que já lhe pertencia!… Eis porque devemos, com apoio das linhas ou das entrelinhas da Palavra de Deus, ou até “sem apoio”, defender que Deus salvou almas que pertenciam a satanás, e por isso “como escaparemos se negligenciarmos tão grande salvação?” (Hebreus 2,3).

Assim, refeitos por essa extraordinária boa nova, o que pontuávamos não era uma suposta falta de lógica na crença de Jack, mas a alegativa de Carlos Caldas de que esta crença não tem base bíblica. E ela é, com certeza, a mesma “decoreba” alegada por todos os cristãos reformados e até alguns católicos, que julgam existir na Terra um lugar onde uma interpretação PERFEITA existe.

Finalmente, se não existe interpretação perfeita (se houvesse, ela teria morrido na noite dos tempos com os primeiros apóstolos; e se não morreu, estaria na Igreja Católica), se em pelo menos dois trechos do Novo Testamento os direitos de satanás ficaram implícitos (outros há com certeza, como mostrou Russell Champlin em seu O Novo Testamento Interpretado Versiculo por Versiculo), se a mente de Jack é saudável e lúcida o suficiente para nos basearmos nela, e se a obra de Deus ganha toda a Glória de um sacrifício perfeito por aquilo que não mais lhe pertencia, então façamos coro uníssono com a fé de CS Lewis, certamente a última deste mundo a contemplar todas as preciosidades de tão gloriosa Revelação.

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