A Idolatria da Bíblia

A crença de que Deus é o autor da Bíblia tem confundido quase toda a Cristandade e impedido o crescimento espiritual das almas, que acabam crendo de forma mística naquilo que combatem. É contra esta realidade que o Magistério Eclesiástico se levanta e publica atualizações.

Idolatria da Bíblia

Não há quem não conheça ou quem nunca tenha experimentado a noção de idolatria defendida pelo protestantismo, num fenômeno até certo ponto mundial, independente do grau de instrução dos cristãos ou daqueles a quem eles dirigem a Palavra. A ideia é radical e impede até mesmo a inocência da veneração, sentimento nobre da alma que ama o seu próximo como a si mesma, sem perder a pureza dos afetos pueris louvados por Cristo. Sem falar das vezes em que a acusação de idolatrar alguma coisa é arremessada sem dó nem piedade, até com hostilidades, contra imagens e outras relíquias de valor inestimável para quem as venera.

Todavia a questão não para na simples ignorância ou intolerância de quem julga o coração do próximo, acusando-o de colocar a criatura no lugar do Criador. Infelizmente, porém, o fenômeno aqui reportado também cai na incoerência comum da humanidade descrente, ou seja, na velha ironia do sujo falando do mal lavado e vice-versa. Ao examinar a questão pelo que Jesus disse em Mateus 7:1-7, seria possível aceitar as acusações dos julgadores se eles estivessem certos (ou inculpáveis) e não possuíssem o pecado que dizem ver nos outros. Mas não é o caso aqui. A acusação de idolatria espalhada aos 4 ventos deveria ser feita a eles mesmos, pois também estão idolatrando algo em suas vidas, incorrendo na mesma sentença bíblica de condenação.

Isto posto, e dada a quantidade de idolatrias na vida dos crentes (dinheiro, sexo, trabalho, etc.), vou me ater aqui tão somente ao caso bíblico, ou seja, àquela idolatria que está oculta numa das tentações mais sutis e insidiosas, de tantas quantas o diabo distribui para desviar o coração humano do único Senhor. Refiro-me à idolatria da própria Bíblia, ou seja, o modo pegajoso de tratar um mero livro humano como se ele fosse obra direta das mãos de Deus, quando não é obra nem mesmo das mãos de Jesus.

Porquanto partir da premissa de que a Bíblia foi escrita por mãos (e cabeças) humanas deveria servir, de imediato, para conscientizar e lembrar que, neste sentido, ela é um livro como outro qualquer, exceto quando uma investigação mais acurada aponta um número muito menor de falhas e incoerências, deixando em evidência a crença sadia de que Deus de fato inspirou a maioria das Revelações ali expostas. Afora isso, suas linhas e textos dão uma ideia muito segura do modus operandi da mente humana, cuja estrutura foi criada para servir à aprendizagem e ao ensino de outras mentes, na chamada “escola da vida”.

Entretanto, não é assim que os crentes reformados enxergam as Escrituras, sobretudo quando não se preparam suficientemente, ou quando se deixam levar apenas pela emoção da pertença a uma determinada denominação eclesial, não importando o que os estudiosos e teólogos porventura tenham descoberto e informado aos seus leitores (pior, os pastores dessas denominações, seja por preguiça, proselitismo ou má vontade, i.e., propositalmente, usufruem desta situação sem dar qualquer aviso que impeça as ovelhas de descobrirem tal realidade, e assim o rebanho deles fica muito mais dócil à dominação).

Isto tudo fica bem esclarecido quando ocorre qualquer discussão onde uma parte da lógica da Revelação não aparece visivelmente nas linhas da Bíblia, estando oculta nas entrelinhas pela pura vontade de Deus de que o rebanho desse ouvidos aos teólogos ou, como Paulo explicou, aos doutores e mestres (Ef 4,11-12 e I Co 12,29) auxiliares do processo de conscientização humana do Plano de Deus (é bom reler Atos 8,27-31 agora, e ver o que explicamos NESTE livro).

Por exemplo, isto acontece com revelações posteriores da verdade salvífica que não ficaram expostas NA LETRA das Escrituras, e às vezes nem nas entrelinhas. É como se Deus não pudesse se expor o suficiente para caber na mente humana, e por isso algumas mentes reconheceriam partes da revelação a posteriori, ou seja, após o tempo em que a evolução humana (pessoal e coletiva) se firmasse em determinados pontos, e assim alguns atalhos fossem ficando claros apenas após seus caminhos terem sido percorridos a pé, quiçá em sofrimento.

Na prática, pode-se dizer que o Cristianismo experimentou transformações ao longo da História que foram idealizadas por Deus e gestadas ao longo das gerações, com algumas mudanças cruciais na teoria e na prática da fé, como por exemplo:

  1. No início do Cristianismo, as comunidades não batizavam crianças. Depois, com o passar do tempo, a consciência cristã foi evoluindo e percebeu que, dados os exemplos de “crianças endiabradas”, literalmente (e hoje em dia, crianças que até matam pais), o mais seguro era dar-lhes o Selo do Espírito para posterior acerto com Deus, visando garantir a nutrição espiritual que também salva adultos (os sacramentos).

  2. No início do Cristianismo, a cristandade entendia que a Terra era o centro do Universo e o Homem a obra mais perfeita da Criação. Hoje em dia o Cristianismo Oficial admite a Terra como um mero ponto perdido no cosmos (não sendo centro nem mesmo de seu Sistema Planetário) e o Homem uma obra inacabada, em constante evolução para um padrão superior de corpo e alma.

  3. No início do Cristianismo, a cristandade entendia que a única fonte confiável da Revelação era a letra propriamente dita das Escrituras Sagradas, com os eventos decorrentes de autoritarismos nascidos por reis e governantes que usavam as “letras” para a opressão das massas. O tempo passou e a Igreja entendeu que a revisão teológica era fundamental, e o Magistério passou a orientar os fiéis na forma de ler e entender a Revelação, além do que estava escrito na simples letra morta. (Isto é apenas um breve resumo do que tem providenciado o Sacro Colégio).

Claro que, infelizmente, em paralelo a isso, também houve a “evolução trágica” (involução), que é quando uma compreensão anterior deu lugar a uma ideia posterior incorreta, como nos seguintes casos:

  1. No início do Cristianismo, as comunidades pós-Pentecostes entendiam o milagre da glossolalia como uma obra divina para ajudar na divulgação do Evangelho, que precisava de espalhar-se pelo mundo todo e salvar gentios e pagãos estrangeiros. Passou o tempo e a “evolução trágica” fez a cristandade inculta pensar que falar em línguas era balbuciar sons e sílabas repetitivas para falar como os anjos, como se isso fosse a língua “solar antiga”, como diria CS Lewis.

  2. No início do Cristianismo, a Cristandade entendia todo o valor de Maria no plano de Deus e a levavam na devida conta de auxiliar no processo, já que qualquer santo poderia orar por outro, e interceder pela recuperação, já que ninguém está morto aos olhos de Deus (Lc 20,38). Todavia, no final da Era Medieval, a Igreja entendeu que Maria subiu aos céus, como Jesus, e nem levou em conta que Maria já estava no Céu, inteiramente, como mostrou Lewis em “The Great Divorce” (explico mais sobre isso no livro “O Grande Divórcio do Egocentrismo”). Logo, o dogma da assunção de Maria é um erro, ou no mínimo, um grave esquecimento.

  3. Nos primeiros séculos do Cristianismo, a Cristandade pensou corretamente que o próprio Deus estava presente, em corpo e sangue, nos elementos materiais do pão e do vinho, e a Eucaristia tinha todo o peso da mecânica salvífica de Deus, ampliando o leque de opções de caminhos para as almas perdidas. Quando a Reforma chegou, os cristãos reformados passaram a pensar que na Santa Ceia estavam presentes apenas pão e vinho, e nada mais, dilapidando uma das mais ricas fontes de salvação oferecidas por Jesus, a sua própria carne (Jo 6,54-56). E assim por diante…

Entretanto, foi justamente aqui que entrou o maior problema: a evolução trágica fez a cristandade reformada entender que a Bíblia não é um livro humano, e que por isso não pode estar sujeita à evolução da compreensão da mente, sendo forçada a informar apenas aquilo que condizer com a interpretação mais antiga, aliás, com a interpretação já consagrada pela cultura reinante numa determinada denominação, particularizando e bitolando a sua abrangência.

Quem lê um só livroTodavia isto levanta um terrível problema: é que assumir que um livro humano seja tomado por uma obra divina comporta todo o teor do misticismo formador de uma idolatria, e assim o texto canônico passa a ser perigoso, tal como a energia nuclear, que é benéfica mas perigosa em mãos erradas. Um livro de leis (como é a Bíblia), caído nas mãos erradas dos maus intérpretes, se transforma num verdadeiro manual de execução de um regime autoritário, onde pode ocorrer, no mínimo, uma dilapidação da verdade ou um cerceamento da liberdade de pensamento. Chegando-se a este ponto, nada mais tem validade e a única regra admitida é a imposta de cima para baixo, i.e., passa-se a viver então uma ditadura tirânica, com todas as letras maiúsculas.

Sente-se tal coisa em meras conversas sobre temas da espiritualidade. Quando vemos crentes a discutir qual ponto-de-vista é o correto, p.ex., acerca do divórcio, imediatamente se ouve algum deles a irromper (triunfal) dizendo: “vamos ver o que diz a Bíblia! Se for isso o que ela diz, é assim que deve ser”. E lá vão todos eles, cabisbaixos, conformar-se a uma letra morta, ou que pode ter morrido pela “inanição teológica” ou pela quebra da razão social da regra; ou seja, de uma regra que servia direitinho a um tempo de respeito às leis e a Deus, mas que se tornou uma obra de satanás se imposta noutro tempo (onde uma separação trará muito mais paz de espírito do que a manutenção forçada de uma relação, quando nenhum dos cônjuges quer mais viver em comum). E lá vem de novo outro crente citar outra regra morta, dizendo que se houver separação, mesmo consensual, que nenhum dos dois se case novamente, e assim a roda viva da infelicidade só aumenta, na bola de neve do sofrimento humano.

Pior, isso se dá também com regras e conceitos puramente espirituais, relativos à salvação das almas, e não apenas a casamentos e vida social. Senão vejamos…

Quando se discute a salvação das almas, a maioria das denominações tende a colocar um ponto final na questão da exclusiva participação de Cristo, como único caminho da Graça de Deus. Assim, segundo este ponto de vista, basta alguém crer em Cristo que já possui ingresso imediato ao Reino de Deus, como se a longa caminhada não contivesse responsabilidades mil, inclusive morais, de amparo ao necessitado e outras caridades. Pior, nem as linhas e nem as entrelinhas acatam tal simplismo, e a profusão de textos onde Jesus expõe a polissemia da salvação acabam calando qualquer sofisma teológico. Como exemplos, basta citar a parábola do bom samaritano, a parábola do Juízo Final, o encontro de Jesus com o jovem rico e a epístola de São Tiago, irmão de Jesus. Se um cristão lê tudo isso e deduz que é apenas a fé que salva, não precisa de Cristo, e sim de um oculista.

Eis exposta a idolatria da Bíblia. Querer forçar a barra crendo que naquele monte de páginas está a voz audível de Deus sem qualquer interferência humana, é o mesmo que acreditar que numa gravidez não há participação de nenhum espermatozoide. O Homem está por trás da Revelação de Deus, tal como Deus está por trás da saúde mental humana. Se Deus deu ao Homem poder (leia-se cérebro) para entender a sua santa Revelação, deu também a inteligência para descobrir cada vez mais dentro dela, ao longo do desenvolvimento científico e intelectual da Humanidade. Se o cérebro parar no tempo e enxergar apenas aquilo que os antigos entenderam, acabará engolindo a crença perigosa de que a Bíblia é a própria voz de Deus (sem qualquer necessidade de discernimento) e um dia irá idolatrá-la. Já vem tarde a evolução deste raciocínio.

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