Exemplo de fé de uma descrente

Uma senhora extremamente caridosa, mas cética, deixa ao longo de sua vida um exemplo perfeito de fé que deveria ser constante entre cristãos, como o resultado mais lógico de sua filiação a Cristo.

Ela se chama Maria, mas detesta este nome. Diz que pertence a uma Maria comum que jamais concebeu sem ter dormido com um homem. Por isso, ela usa sempre o seu segundo nome, que nada mais é que uma homenagem do pai dela a Marlene Dietrich, a atriz que fez história na indústria cinematográfica nos áureos tempos. Seu sobrenome é conjugado de seu cônjuge, um ferrenho ateu que lhe roubou a fé, por conta de um trauma insignificante que o orgulho avultou. Seu sogro, pai do ateu, ao contrário e surpreendentemente, era um médico de extrema fé e que deixou sólido modelo de discipulado cristão na humildade e na caridade.

Exemplo de fé de uma descrente

A descrença de Marlene não é tão doentia quanto a de seu esposo, embora, com os maus exemplos a olhos vistos dos cristãos de todas as denominações atuais (sobretudo os da teologia da prosperidade e da pedofilia clerical), chega muitas vezes às raias da insanidade e do desespero, quando se encoleriza e até rasga as páginas do Novo Testamento, dizendo que, se Deus existir, um dia irá peitá-LO por condenar ateus e admitir, no seu “suposto santo Reino”, o ingresso de safados incorrigíveis, como crentes corruptos e clérigos pedófilos. É assim que pensa a caridosa Marlene, como um sinal vivo de que a salvação das almas independe da fé específica sobre a pessoa de Jesus.

Marlene deixou de crer em Deus lá pelos idos de 1967, quando até então levava os filhos à igreja próxima de sua casa, chegando inclusive a contratar, por amizade, uma freira católica para ensinar o velho catecismo aos rebentos. Desde que se casou com seu esposo, “seu Luís”, a insidiosa influência deste sobre ela se fez notar no paulatino esfriamento do coração, que entendia tudo como uma injustiça que a tirou dos velhos carnavais do Rio de Janeiro e a trouxe para uma terra seca e sem graça, como a Fortaleza dos anos 50. Amofinada pela rijeza do marido obtuso e ciumento, perdeu a alegria de viver, como ela mesma sempre confessou aos filhos, desde quando assegurou-se de que eles poderiam entender tais “desilusões”.

O filho mais velho de Marlene, após todos os anos em que refletiu sobre sua vida, chegou à conclusão de que a fé de sua mãe foi uma vítima indefesa do ateísmo do marido, associada à desventura de se ver obrigada (casar na sua época era como uma obrigação, sobretudo para uma moça pobre da periferia do Rio) a morar longe da terra que amava, do amor à dança e aos sambas bem compostos dos velhos carnavais e da alegria de suas dezenas de irmãos, cuja presença era sempre uma festa só, na Cidade Maravilhosa.

Todavia nada disso fez com que, lá no âmago mais protegido de seu coração, aquela fé pura herdada de sua mãe Aurora (uma católica devota) se mostrasse golpeada de morte, de tal modo que o precioso tesouro vez por outra trepidava e levantava a tampa, deixando uma pequena fresta de seu brilho transparecer em cada passo e pensamento. Entretanto e com efeito, não era jamais em atitudes religiosas (ou beatitudes) e espirituais que o brilho da fé aflorava, pelo contrário, era em gestos de amor desinteresseiro e absolutamente desapegado de materialidade comercial, apesar de toda a aparência de ter até ciúme do dinheiro.

[Lembro hoje, com alegria e com o espanto de uma atitude precisa e agora bem vista pela passagem dos anos, que D. Marlene literalmente “invadiu” a casa de um pastor protestante que, após 2 anos de incansável evangelização, conseguiu inculcar na cabeça do filho mais velho uma doutrina simplória e maniqueísta, na qual o simplismo equivaleu a uma verdadeira lavagem cerebral num jovem recém-saído da adolescência, tornando-o “murcho” e fanático como nunca antes na vida. Dentro da casa invadida daquele pastor, lembro muito bem que o argumento principal dela foi aquele que retorna à minha mente com divina força nos dias atuais: “Sou uma mulher pós-graduada e culta, que educou os filhos na liberdade de expressão e pensamento, entregando-os às mais diversas leituras desde cedo, e por isso não admito uma religiãozinha qualquer, pregada por gente sem instrução, aliciar meu filho e levá-lo à beira da paranoia, como tenho visto nestes últimos 4 dias de dezembro”. Isto foi a ducha de água fria nas intenções daquele pastor, que jamais voltou à ativa na sua missão de doutrinar esta “vítima”, que graças a Deus precisou dirigir-se pessoalmente aos livros para ver mais longe o horizonte espiritual que a Bíblia enseja].

Quanto àquela aparência de ter “ciúme do dinheiro”, ela não possuía nada que se pudesse chamar de “suas posses”, gastava muito pouca grana consigo mesma (isto explica o uso de perfumes de terceira e roupas démodé, que toda mulher faz questão de ter de boa qualidade e na moda) e nunca teve quaisquer vícios, mormente em relação a bebida, comida ou cigarro, “embora gostasse de cassinos”. Tinha, isso sim, uma vida completamente voltada para a família, até voltada demais, naquilo que um crente certamente chamaria de fanatismo protecionista ou idolatria étnica. Mas não era nada disso.

Ao contrário, tinha o amor divino completamente entranhado em suas intenções para com os seus, e, a forma como nutria e mantinha cada filho (muito além da alimentação sadia, da Educação bem paga e da assistência médica de primeira) em estado tal que nunca nenhum deles passasse qualquer mínima necessidade, fazia resplandecer no seio familiar a mais pura luz divina e marial, mesmo que vez por outra um filho fosse meio-ingrato para com tamanha benevolência.

Esta obsessão de ajudar irrestritamente a cada ponto fraco na luta pela sobrevivência de cada filho chegava às raias da autonegação, como se ela tivesse ouvido e gravado bem o trecho bíblico onde Jesus disse “aquele que quer ser meu discípulo a si mesmo se negue”. Anulação total. Nada para ela e tudo para a prole. Ia aos extremos. Ficou famosa a noção de que “Dona Marlene é melhor do que um banco, pois jamais pedimos para receber; e quando pedimos uma nota de 10, ela sempre entrega uma de 20; pedindo uma de 20, ela entrega uma de 50”.

Lembro que pairou um estranho medo, dentro da alegria desta constatação, sobre as origens de tanto dinheiro, pois a rigor nunca a vimos passar necessidade, o que prova outra virtude cristã digna dos melhores santos: “ela escondia suas caridades, e por isso os filhos jamais a viram chorar por estar sem dinheiro e muito menos temer o futuro do lar”. Também nunca ninguém jamais ouviu qualquer notícia de deslize para com os seus credores, ou onde o nome dela ficasse manchado no mercado de crédito ou nos serviços de proteção deste.

Sua inteligência de mulher como de homem ou de homem em corpo de mulher saltava aos olhos de qualquer um, por mais desatento que fosse. Bastava ouvi-la tratando o próprio gênero (a Mulher de um modo geral) e o deixando “no seu devido lugar”, ao ponto de dizer que preferiria mil vezes trabalhar com homens e lidar com homens do que com mulheres… Ou ao ponto de detestar novelas (estas novelinhas sórdidas que infestam a mídia atual). Aliás, a propósito, ela nunca via sinal de evolução na Mulher moderna, exceto quando conseguiam tratar os próprios filhos com a mesma isenção com que ela tratava os seus. Além de tudo, tinha uma astúcia tão vivaz que literalmente captava as coisas “no ar, antes mesmo de elas levantarem vôo”, como uma espécie de adivinha dos efeitos que as causas provocariam. Com esta bola de cristal cerebral ou com este sexto sentido agudo, jamais deixou um filho cair num precipício arriscado neste mundo vil, dando a eles sempre a melhor opção de atalho nos muitos caminhos da vida.

Entretanto e contudo, a maior virtude dela era a sua estranha e gigantesca fé, que este articulista jamais teve igual. Ipso facto, o otimismo dela, sua inabalável autoconfiança, sua estima elevadíssima, a ausência de negativismo e a segurança que demonstrava no resultado positivo de suas “previsões”, eram os requisitos particulares que ela recebeu dos anjos ou a eles emprestava, dando um exemplo que raramente se vê no mundo pessimista de hoje, mesmo quando falamos em crentes. E aqui estava o segredo oculto que seu ateísmo demonstrava: crer em Cristo não era então apenas acreditar numa interpretação particular da Bíblia, mas agir para o bem maior do próximo e tomar atitudes efetivas de “socorro” das necessidades alheias, como principalmente abrir os bolsos numa liberalidade contagiante, que ensinava sempre como não ter apego à matéria e ao vil metal. Neste sentido, é comum encontrarmos, até hoje em dia, clientes no comércio que adoram recebê-la porque nunca ficaram sem uma boa gorjeta e uma anedota de rompante, como ditava o seu bom humor escrachado de cearense de coração carioca.

Isto posto, e guardadas as devidas proporções, poder-se-ia dizer que ali estava “um Cristo-mulher”, que se doava por inteiro e sem apegos e jamais deixava faltar o vinho na festa de um lar que suportou a vida inteira, apesar das gritantes diferenças entre ela e seu esposo (ela era uma verdadeira máquina de organização e visão, enquanto o marido era o suprassumo da desordem e da miopia). Isto, até certo ponto, resume bem o argumento que serve de base a este discurso.

Nosso intuito era mostrar que: (1.) tanto a fé direcionada para outros objetivos pode ser um portentoso modelo da fé cristã, quanto (2.) uma pessoa descrente de Jesus pode ser uma das mais excelentes discípulas do Salvador, como os fatos concretos provaram. Além destes, CS Lewis também mostrou, em seu último livro das “Crônicas de Nárnia” (A Última Batalha), a história de um soldado calormano que trabalhava devotamente para Tasha e era, na verdade e no íntimo, um magnânimo servo de Deus, só que inconsciente e puro, tão-somente porque seu coração agia cegamente mas em resposta ao amor de Deus e em obediência irrestrita ao seu chefe, que enganou a todos dizendo ser o verdadeiro Deus. Eis ali, naquele destemido filho da Calormânia, o molde exato da Dona Marlene que Aslam coroará.

Finalmente, fica para nós uma inquietante lição: se um homem benigno e puro pôde ser tão enganado por um deus falso, e se uma mulher caridosa e honrada como Dona Marlene pode chegar a descrer tanto do Deus que lhe criou, temos que manter os olhos fixos em Jesus e o coração ligado a Ele, como única segurança possível neste mundo ilusório. Nossa sorte bendita é que Deus só olha o profundo do coração, e ali (só) Ele pode ver se estamos de fato conectados à Sua bondade infinita, ou se apenas somos uma casca seca, que o fogo consumirá. Se estivermos ligados à Videira, certamente carregamos em nós uma permissão especial, um salvo-conduto, um ingresso permanente para o Reino pago com sangue e lágrima.

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