O dilema de ser ou não ser igreja

Ora sendo uma mordaça ao pensamento ou um mau exemplo moral, a igreja também constitui o melhor meio de viver a fé, que não pode salvar sem uma convivência salvífica entre irmãos.

Não podemos deixar de ver todos os malefícios que um ajuntamento humano enseja a quem quer que dele faça parte, sobretudo quando se trata de uma comunidade religiosa, onde o bom comportamento significa o único caminho para o êxito espiritual. Todavia e contudo, não podemos deixar de ver o elevado benefício que essa mesma comunidade enseja, único em condição sine qua para aperfeiçoar o comportamento que permite o êxito desejado.

Não tem jeito. Com a igreja se dá perfeitamente aquela força de expressão que diz, acerca de algo ao mesmo tempo mau e bom, com o qual precisamos nos relacionar: ruim com ela, pior sem ela. Lembra-se da polícia? Ruim com ela, pior sem ela. Lembra-se da hierarquia? Ruim com ela, pior sem ela. Lembra-se das injeções e transfusões? Ruim com elas, pior sem elas. Porquanto as duas condições opostas ocorrem simultaneamente, e a proposição-síntese exprime-se assim: é horrível ter uma igreja que nos proíbe de pensar, ou cuja liderança dá mau exemplo de pecados carnais gritantes; no entanto, seria um inferno total uma vida sem igreja, pois estaríamos apenas nos lambuzando em nossos pecados, sem ter ninguém que nos apontasse as falhas, e assim não chegaríamos ao Céu que queremos após a morte. Creio que é esta dupla função, este perfeito binômio entre as vantagens e as desvantagens, que tem mantido a igreja viva ao longo dos últimos 2.000 anos.

E podemos descobrir facilmente porque algumas pessoas preferem abandonar a igreja (quase sempre sem ver as vantagens), e porque outras preferem ficar nelas, apesar de enxergarem bem as desvantagens. Chamemos as primeiras de “ímpios” e as segundas de “pios”.

Os ímpios decidem não se manter em (ou nem sequer se aproximar de) uma igreja, em razão de deixar, nadando em seus olhos, apenas a lama com que muitos cristãos se lambuzam, justamente por não comungarem da sujeira e aceitarem esta como prova de que Deus não existe ou que não tem poder para implantar na Terra a “sua” justiça (deles). São aquele tipo de fariseu descrente que, julgando-se superior aos ingênuos que acreditam numa casa imunda como o templo, fica afastado dos locais de culto por uma estranha “inveja-medrosa” (i.e, são aqueles que, por no fundo temerem cair nos mesmos pecados dos hipócritas, saem do ambiente eclesial pensando mal dos que lá persistem, como se a até a igreja e o próprio Deus também comungassem daquela nojeira toda). Ou seja, são o tipo da gentinha que, se o diabo lhes der uma assopradinha leve, irão todos parar no mesmo poço fétido; ou pior, levarão consigo a mesma imundície para a igreja e para seus círculos sociais.

Todavia este tipo de ímpio fala mal da igreja ou dela se afasta não apenas porque ali estão os pecadores mais hipócritas da sociedade! Não, nada disso. O que eles odeiam, de fato, é estarem em um lugar onde os olhos dos outros estão mais preparados para detectar falhas de comportamento, e assim, por detestarem qualquer relato de seus pecados individuais, fogem da igreja como o diabo foge da cruz, jamais se dando conta de que, se num ambiente onde os erros de todos se tornam visíveis e  cobráveis, o quão maiores não serão os erros em ambientes sem qualquer visibilidade e sem qualquer repreensão?…

Ora. Deus é vivo. Ele é esperto. Ele sabia que a batalha contra os pecados é encarniçada e cruel até a última gota de sangue, e se nada fosse feito neste mister, toda a Criação devolveria a Ele apenas a fedentina de um projeto fracassado, e ao final Ele seria apenas um Deus-fracote! Pecados são vícios, e vícios são nojentos e pegajosos, com altas taxas de fertilidade e contágio. Desde que Adão pecou, a bola de neve da sujeira começou a rolar e, a menos que alguém inclinasse o declive, ela jamais deixaria de cair, indo até o fundo do poço e do poço sem fundo. Então, num repente, Deus teve um choque e pasmou-se, sentindo sua imaculada consciência a cobrar-lhe uma providência emergencial, do tipo tudo ou nada, se é que Ele queria mesmo prosseguir com seu plano de criar alguma coisa que não fosse Ele mesmo. Mas o seu infinito amor não desiste de seu plano original, e continua a querer ter com ele essas criaturinhas toscas que nem nós, e ainda desejando receber de nós o nosso tosco amor, que só tem valor por ter uma qualidade dEle, a saber, a voluntariedade.

Todas essas coisas, então, perfazem os argumentos que justificam todos os esforços para a manutenção da igreja na Terra, pois ela é, a um só tempo, tanto o organismo impuro que tem o Deus da pureza como Guia, quanto é também o organismo puro que se acasala com a impureza e envergonha ao seu Guia. Não há nenhum outro argumento além deste. Porém, até aqui, falamos apenas do aspecto positivo de uma igreja, o principal. Agora vejamos o negativo, que agrada aos ímpios e dá-lhes uma razão “justa” para serem ímpios.

O lado ruim da igreja (ela mesma se diz santa e pecadora) é muito mais teológico e filosófico do que comportamental, embora a teologia e a filosofia sempre mergulhem na lama quando o teólogo ou o filósofo pecam. Ter uma igreja (engajar-se) ou freqüentar uma é um transtorno para as almas que, uma vez conscientes da verdade e conhecedoras da teologia, descobrem coisas além do nível mínimo com o qual as congregações mantêm seus fiéis, e assim não apenas abrem mais os seus olhos para enxergar os pecados das lideranças (padres, pastores, etc.), como recebem do Senhor as inspirações necessárias para pregar a Palavra de Deus, e assim recebem das lideranças pecaminosas o silêncio obsequioso ou a mordaça, sendo impedidos de falar qualquer coisa que esteja além do nível “pastoral”, ou capaz de propor “elevação consciencial” às ovelhas.

O problema é que, assim como no meio político, os eleitores precisam ter uma baixa escolaridade para votar em corruptos, e os soldados precisam ser quase analfabetos para cumprirem ordens absurdas, assim também as ovelhas precisam ser um pouco – ou muito – ignorantes para encher os templos com comportamento uniformizado, visando distinguir uma denominação de outra, sob pena de ao final os cristãos serem um só grupo, formando uma só igreja e eliminando o ganha-pão dos líderes e outros aproveitadores. Noutras palavras, se o espaço é pequeno para tanta liderança ganhar o seu $ (cada uma com seu imenso rebanho), então todas precisam lutar com unhas e dentes para deixar o seu corpo doutrinal bem definido ou distinto, caso contrário, quem pensar diferente será um traidor ou um membro de outra denominação, e por isso não pode se manter no grupo. Como é muito difícil formar uniformidade robótica entre os sábios, então os cordeirinhos precisam ser quase analfabetos na Bíblia para serem fiéis, i.e, fidelizados, obtusos, soldados rasos, ovelhas-cegas que seguem cegamente a voz de seu pastor.

Isto tudo é dito sem lembrar dos líderes que caem em pecados carnais, o que torna o drama da igreja muito maior, pois ali é quando a igreja vira um inferno, com o próprio demônio na liderança. E não são poucas, na Pós-modernidade, que dão este triste exemplo. Mas chega de dor e choro.

A verdade é que a igreja foi chamada pela Palavra de Deus de NOIVA de Cristo. Uma Noiva que, em comparação com o Noivo, só pode ser mesmo muito pecadora, e em comparação com todas as outras noivas do mundo, só pode ser santa!… Eis aí o grande “x” da questão.

Ruim com ela, pior sem ela. O mundo sem igreja seria o inferno, literalmente falando. Mas é verdade que só os santos poderiam reconhecer isto, e dar a ela o devido respeito, não por ela, mas pelo Noivo que ela tem. E pelo Noivo, valerá sempre a pena aproximar-se da Noiva, uma vez que nenhuma outra mulher, nenhuma outra pessoa na Terra, teria algo de bom a oferecer. Até porque, longe dela, e os santos sabem disso como ninguém, eles também chafurdariam no lamaçal do pecado, ao ponto até de sentirem “prazer” com a lama. Logo, e por isso mesmo, fazendo o exercício que o mundo não quer fazer e que é o único que salva, eles aproveitam aquele único segundinho em que conseguem ver os seus pecados (aliás, o mal que seus pecados fazem aos outros) e correm para a Noiva, pedindo a ela para os ajudar, e ela então se torna sua mãe e terapeuta. Isto explica a confissão, a penitência, a voz de Deus na garganta do pregador, a assepsia promovida pelos sacramentos, etc.

Finalmente, se o leitor freqüenta igreja, agora já sabe o que ela tem de ruim, por causa da proibição de pensar que vem junto das proibições de não pecar (não faz mal: pense à vontade, e estude bem a Bíblia, e continue aos pés da Noiva, ouvindo mais o Noivo do que sua futura mulher). Mas se o leitor não freqüenta igreja, agora tem um bom motivo para fazê-lo, a menos que queira manter-se no lamaçal, sem ouvir ninguém e a falar mal da vida alheia. Se for isso, você “pelo menos não sofre os efeitos da burocracia eclesial” e tem o seu futuro decidido mais rápido. Sem dúvida. Porém, cuidado! Quem toma uma decisão dessas está proibido e ter medo. Já pensou? Você pode segurar esta onda? Então tá. Se um dia se sentir só, não caia na besteira de procurar a Noiva do Rei. Lembre que ela pode ter a língua afiada com a espada do Noivo…

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