O porquê das curas imperfeitas

Analisando razões para as respostas incompletas das orações que pedem curas, inocentando Deus pelos resultados insatisfatórios das preces pela saúde individual.

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O presente artigo é dirigido às almas que foram agraciadas com o dom da fé, e com prazer o digo, dispensando os demais leitores desta pura perda de tempo, que é ler uma matéria cujo fundamento é intangível, ou onde “não há fundamentos”, como os descrentes dizem. Acertados os nossos ponteiros entre os leitores de fé, podemos agora falar tranqüilamente, como manda a boa educação dos tempos da nobreza.

Quem tem fé sabe o quanto precisamos de preces ou meditações com o Altíssimo, o quanto delas usamos e o quanto as negligenciamos. Mas todos irão concordar que já fizeram ou fazem uso da oração como um ingrediente fundamental da vida, o qual se torna até indispensável em certas ocasiões. Da mesma forma teremos grande percentual de cristãos que poderão contar os benefícios advindos das suas orações, seja em momentos de súplica ou agradecimento.

Então, uma questão se imiscui nas práticas supracitadas e delas deriva, formando também boa parte das estatísticas mundiais de orantes, sobretudo no meio cristão. A saber: as orações sem resposta ou com respostas incompletas. E sobre elas muito já se escreveu e muito já se respondeu, mas jamais atendendo a uma questão delas decorrente. É o seguinte.

Os teólogos e religiosos sabem bem (e explicam) que quando Deus não responde uma oração, sem dúvida Ele viu motivos muito justos e especiais para fazê-lo, tais como: o resultado final negativo não previsto pelo orante; o erro de pessoa embutido na oração (pede-se uma coisa boa para uma pessoa e ela só seria boa para outra); o “simples” desmerecimento de quem faz o pedido; a hora errada para o pedido, etc. Esta é uma lista “simples” e sintética do que acontece de fato, na avaliação que Deus faz da ocasião, da oração e do orante. Porém há mais uma resposta. Uma, com muitas ramificações.

Para entendê-la, precisamos assumir as seguintes premissas: que o pedido é moral e legal; que é racionalmente válido; que é útil e necessário para a própria pessoa que ora; e é oportuno para a ocasião. Enfim, que satisfaz tudo o que deveria satisfazer na perfeita harmonia do cosmos. Observe o leitor como a idéia de SATISFAZER TUDO já é uma meta complicada, o que obriga a Teologia a assumir que Deus responde as orações independente do quanto cada uma delas cumpre a longa lista de condições para sua realização. Ok? Até aqui tudo claro? Pois bem.

Entretanto há algo que escapa a essa longa lista de condições, digamos, voluntariais do ato de orar, e recai numa área de elemento “fortuito”, por assim dizer, ou em cuja ocorrência as vontades envolvidas nada interferem e nada podem fazer. I.e, onde nem a vontade do homem nem a de Deus podem ajudar muito, em razão da realidade nua e crua da circunstância do orante, independente do livre-arbítrio deste e do poder de Deus. Vamos entender agora.

Dois fatos colossais entrecruzam a história das orações: a Queda do homem e a Salvação de Cristo. Esta é una, perfeita e suficiente, como diz a Teologia, mas mantém-se dependente da vontade do Homem, e por isso está sempre sob o risco de acorrentar-se nas rejeições humanas. Não precisarei aqui dizer que existem decisões pessoais que afastam Deus ou O deixam de fora; e quando Deus fica de fora, o poder dEle vai junto (fica fora também). Isto todo religioso sabe. Todavia, a Queda do Homem, geralmente esquecida pelas psicologias e teologias pós-modernas, não atingiu apenas as áreas comuns, normalmente elencadas pelo ABC do catecismo, tais como a falta de amizade com Deus, a escalada decrescente de pecados, a fixação em vícios mortais, a ausência de moral e outras conseqüências danosas para o praticante. A Queda também desligou e danificou os elos de ligação do Homem com Deus, e este processo também foi dinâmico, ou seja, encadeado e decrescente, de tal maneira que a passagem do tempo tornava os elos cada vez menores e mais defeituosos, ao ponto de significar uma queda real, isto é, uma perdição completa e uma tragédia absoluta.

Isto significa que o desastre foi tão colossal que, mesmo na hipótese de o homem se tornar bom, arrependendo-se de seus pecados, crendo e fazendo a caridade, ainda assim os danos que o seu pecado lhe causou deixaram uma falha intrínseca, só corrigível no Paraíso, já que o pecado foi uma doença adquirida no paraíso, sem qualquer culpa da parte de Deus.

Admitindo que o Homem chegou a cumprir todos aqueles requisitos de bondade elencados na Palavra de Deus (supracitados), incluindo o arrependimento e a caridade, nada disso tem o poder de restaurar a saúde perfeita do Paraíso, já que nenhum cristão recebe o chamado “corpo ressurreto” ANTES da morte deste corpo físico e debilitado. E só o corpo ressurreto é perfeito. Eis aqui explicada a dificuldade do próprio Deus onipotente em atender todas as orações por inteiro, já que a totalidade do pedido implicaria em dar algo completo a uma alma incompleta, ou melhor, sem o corpo capaz de receber tal bênção.

“É claro que nem todas as orações pedem algo tão sublime que implique numa resposta escatológica dessa magnitude”, diriam alguns. Sim, é verdade. Mas a maioria das respostas às orações chegam incompletas porque o orante nem sabe que HAVIA MAIS COISAS A RECEBER por meio daquela oração. Ou seja: por causa do corpo físico deficiente, pedimos mal ou pedimos pouco (“Não sabemos orar como convém” – Rm 8,26 e Tg 4,3) por julgarmos que o todo visualizado no pedido contempla o todo que Deus vê para cumpri-lo, e assim vamos sendo atendidos precariamente, embora o precário nos agrade por não enxergarmos nada mais além dele. Todavia os pedidos atendidos só nos agradam –mesmo com respostas parciais – quando são endereçados a áreas não-letais, ou seja, coisas cotidianas que nos dão prazer ou satisfazem às nossas necessidades básicas, como comida, vestuário, viagens, etc.

Contudo, e infelizmente, quando nossos pedidos são feitos para áreas letais, como a saúde, por exemplo, então a fragmentação das respostas pode ser percebida, e geralmente é sentida com uma dor ainda maior que a da doença que nos acomete na ocasião. E só aqui começamos a criar dúvidas ainda mais perigosas para nosso espírito, que é quando começamos a pensar que Deus não tem tempo para nós, ou que nem chegou a nos ouvir, ou que é egoísta, ou que faz acepção de pessoas, curando uns e não curando outros, etc.

Nada disso. Aqui aparece uma parte grave de nosso defeito da Queda: pensamos errado. Não bastassem os defeitos físicos e emocionais que herdamos de Adão e Eva, ainda herdamos o pensar errado, que coloca Deus na latrina das piores reações humanas, como se Ele mentisse ou se negasse a perdoar a quem passou a vida toda Lhe ofendendo. Deus não é homem! Deus nunca erra. O que temos que pensar é: “se Ele nunca erra, por que a resposta de minha oração de cura veio incompleta?” (Melhor ainda seria perguntar “para quê”, ao invés de por quê). [Se você for cristão, poderia também perguntar: há alguma prova bíblica, com Jesus presente, onde houve cura incompleta? Sim. Há. Veja em Mc 8:22-25, e tudo indica que o resultado só ficou legal porque Jesus estava fisicamente ali].

A razão pela qual Deus não cura tudo com perfeição é que há uma parte do caminho da oração – ou dos canais intermediários – que é dificultada pelo pecado individual (coração sujo, ouvido sujo, boca suja, etc.), e por isso o poder de Deus não alcança todos os “lugares da alma” onde a doença se instala. Não é apenas que o orante é um pecador!… Quem nos dera fosse apenas isso! O problema é muito mais sério do que podemos supor. Veja.

A Queda do Homem provocou defeitos tanto na mente (emoções e sentimentos), quanto no corpo (instintos e atitudes), porém muitos deles curáveis pelo arrependimento, pela fé, caridade, etc.. Porém alguns defeitos aderiram à própria capacidade de comunicação do homem com Deus, e pior, até aos canais e conexões do espírito humano com o Espírito de Deus; como se tivesse ocorrido um incêndio numa casa (Mt 12,43-45). Digamos então que houve um incêndio na nossa casa, mas que no entanto ela foi salva pelos bombeiros. Só que o incêndio a deixou sem condições de religar, a contento, os fios da rede telefônica, da Internet, etc., embora sem ter queimado quase nada da rede elétrica. Assim, a casa ficou precisando “de uma outra casa” para restaurar a capacidade de comunicação anterior. Os fios, as canaletas, os canos e cabos, as luvas de conexão, as calhas da fiação e todos os modens ficaram danificados, inclusive as paredes por onde tais conexões passavam. É claro que alguém ainda podia fazer ligações telefônicas da casa velha para o mundo, mas elas sempre saíam chiadas e zumbidas, dificultando a audição para quem falava e para quem ouvia. Só na casa nova as ligações são limpinhas e perfeitas, facilitando as chamadas e os atendimentos.

Assim sendo, seria preciso uma casa nova (um corpo novo, chamado ressurreto) para que as ligações entre o orante e Deus funcionassem com perfeição, e as respostas chegassem completas. Sei que alguém perguntará: “E a onipotência de Deus, associada à fé para quem tudo é possível, não são capazes de restaurar tudo neste corpo velho?”

Se assim fosse, TODAS AS ORAÇÕES DOS SANTOS seriam atendidas completamente, e não são. A própria Bíblia dá exemplos de santos cujas orações não foram atendidas, ou cuja resposta não foi completa. Até São Paulo passou por esta experiência, e olhe que ele tinha “cacife” diante de Deus para lhe pedir uma cura completa, e Deus lhe deu apenas uma parte da resposta: “A minha graça te basta” (II Co 12,8-9).

Finalmente, amigo leitor, não escrevi este artigo para deixá-lo desanimado. Nós nos tornamos tão pequeninos após a Queda (na verdade, nos tornamos vermes) que nem conseguimos fazer tanto mal quanto pretendíamos segundos antes da Queda, e nem precisamos de uma cura tão perfeita para alcançar a única saúde que importa agora restaurar, a saúde do espírito. Pois é somente por ela que um dia ganharemos uma casa nova, um corpo novo, igual ao de Jesus pós-Ressurreição. E a fórmula para restaurar aquela saúde do espírito pode começar com um gesto bem “simples” (como o ouvir com atenção) e terminar surpreendentemente simples, com a “mera” confiança em Deus, único capaz de nos dar um corpo novo que valha a pena ser perenizado. Pois o resto, i.e, se formos refeitos por obra de nossa maldade, de que adiantará ganharmos uma casa nova e nela só habitarem maus elementos? (Lc 11,26). Qual o proprietário de um imóvel que não se desfaz dele quando os criminosos descobrem seu endereço e passam a extorqui-lo?

Cuidemos, pois, do pouco que resta de nossa casa original (Mt 7,24-27), antes que nem mesmo a fiação elétrica funcione e ela se apague na escuridão, feito castelo de drácula. Com essas boas compreensões, podemos ter certeza de que, pelo menos da parte de Deus, nossas orações estarão sendo ouvidas. Quanto às respostas, ah, deixa o Dono da casa ver qual delas nos ajudará.

……………………………………………….Prof. João Valente de Miranda

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