A questão do merecimento dos milagres

Se Jesus pedia freqüentemente para que nada fosse dito acerca de seus milagres ou de sua autoria, e era sempre desobedecido, quem de nós merece um milagre verdadeiro?

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São inúmeras as passagens no Novo Testamento onde Jesus opera milagres espantosos, os quais iam desde uma “simples cura” de uma cegueira, até a ressurreição de mortos e milagres meteorológicos colossais. Mas um fator vital e insistente sobressai da maioria dos relatos acerca dos milagres do Senhor: Ele pedia para que os beneficiados por milagres não contassem nada a ninguém, ou, quando muito, se apresentassem ao sacerdote para cumprimento da Lei Judaica (Lc 5,14; 9,21; Mt 16,20 e textos paralelos). Por que Jesus não queria divulgação? Vamos analisar isto aqui.

No livro “Radiografia de Maria”, uma frase-bomba foi deixada de propósito para ressoar na consciência dos leitores: “A humildade é a virtude divina mais inacreditável”. A estranheza de toda a Humanidade perante esta virtude de Deus se deve ao fato extremo oposto do pegajoso e diabólico orgulho existente no coração humano, pelo qual tudo o mais é decidido e realizado, não deixando espaço sequer para um pensamento humilde. Há mesmo quem diga que a humildade é depreciativa e até pejorativa, e ganharemos a inimizade de todos se a deixarmos a mostra.

Assim, pois, o mundo funciona e até respira (segundo Costa Matos) em função de seu orgulho pessoal e coletivo, e há, dentre os psicólogos, quem pense que sem orgulho, a depressão é o resultado inexorável da humildade, que leva ao abismo da falta de auto-estima. Não é nossa discussão aqui, e o mencionamos apenas para pensarmos sobre a humildade de Deus.

Ainda mais que no tempo de Jesus, havia pelo menos uma boa razão para que o Mestre não desejasse notoriedade para seus feitos, para não desintegrar o plano salvífico de Deus, cuja eficiência dependeria da confiança-cega, único termômetro eficaz para medir o amor-verdadeiro. Assim sendo, se Deus queria que as almas cressem nEle (i.e, confiassem cegamente no seu amor e poder), não seria possível obter tal confiança com ações que a esta facilitassem, uma vez que a confiança é justamente a virtude que se configura por não usar de provas concretas, apenas a crença de que o objeto da confiança tem cacife para merecê-la cabalmente.

Afora esta específica e precípua razão, não havia a rigor nenhuma outra que pudesse ser aqui elencada, e o próprio Jesus deixou isso claro quando operou milagres portentosos e coletivos, como a multiplicação dos pães e a cura de Lázaro. Mas nem pense o leitor que o próprio Nazareno não se sentiu frustrado e até irritado com a comprovação do desmerecimento dos milagres, e naquele caso da multiplicação dos pães Ele chegou a expressar isso verbalmente, em alta voz, quando disse: “me procurais apenas pela comida que perece, quando deveríeis vir por aquela que sacia a fome para toda a Eternidade” (em tradução livre de João 6,26-27).

Assim, o Senhor sabia do desastre que era operar milagres em público, sem dúvida, mas estava literalmente acorrentado ao fato de sua presença humana não espelhar nenhuma confiança a priori, tal como o corpo deste autor e de todo mundo não revela de si nada mais que um ser humano, em cuja testa não está escrito “tenho poderes divinos e mereço toda a tua confiança”. Isto é tão lógico e vital que o próprio Jesus precisou um dia mudar seu rosto em luz e nuvens incandescentes, naquilo que ficou conhecido como o episódio do “Monte da Transfiguração”, ocasião em que estavam com Ele apenas uns poucos apóstolos, dos mais íntimos e espiritualizados! (Mt 17,1-3).

Agora podemos perguntar: por que ninguém merece um milagre? É uma pergunta muito difícil de responder, não tanto pela complicação de seu enredo, mas pelo tamanho. Seria preciso uma releitura geral de toda a Teologia dos milagres, e então o leitor teria que ir atrás de muitas fontes em livros e tratados, sem dispensar o auxílio da Internet. Não que não se possa esboçar uma respostinha curta para leigo… não. É que a resposta seria tão insuficiente que pareceria enrolação.

O problema é que após a Queda da Humanidade, todo mundo passou a desconfiar de todo mundo, a começar da desconfiança em Deus, a partir do momento em que o primeiro casal não confiou na palavra de seu próprio Pai e Criador (não foi à toa que logo logo um irmão matou o outro). Depois de longos anos de avultamento e enovelamento da desconfiança generalizada, não era de se admirar que a suposta “evolução” resultasse numa sociedade violenta, incapaz de acreditar na bondade alheia, até porque a bondade foi uma das primeiras coisas que os “bonzinhos” erradicaram. Observe como a desconfiança cresceu a tal ponto que nada mais subsiste sem uma prova concreta ou documental, o que explica porque os mestres só podem ensinar a outros mestres se tiverem um diploma de doutorado, um filho só pode ser um bom aluno se tiver notas boas num tal boletim, uma moça só pode ser virgem se a ginecologista fizer um exame tátil, e um homem só pode ser macho de verdade com muita dificuldade, pois às vezes nem mesmo a palavra da mulher dele serve de prova e a masculinidade passou a ser apenas um segredo dele. O leitor captou o absurdo?

Ora. Espantar-se, pois, que Deus retenha seus milagres perante uma raça tão desdenhosa como a nossa não deveria ser nada ilógico, da mesma forma como um filho ingrato não deveria estranhar o longo tempo e a distância que seus pais mantêm dele, e a solidão absoluta deveria ser mesmo o fim de todos os ingratos! Por tudo isso é que se deveria, com urgência, tentar resgatar o merecimento PESSOAL dos milagres, pois somente no plano individual é que Deus poderia operar a contento, ao mesmo tempo sem ser visto pelos que não O merecem (Mt 6,1-6), e ao mesmo tempo “consertando” aqueles que, a duras penas, estão tentando vencer o vício da desconfiança pré-histórica que o tempo lhe inoculou.

E aqui pode, de fato, ocorrer surpresas espantosas. Porquanto Deus é tão pródigo e generoso em sua bondade milagreira que, sem que o indivíduo sequer tenha “acordado” para a intimidade do mundo espiritual, o Senhor pode enviar para ele um milagre tão portentoso que seu resultado fique literalmente oculto ou congelado, até que a evolução verdadeira da fé e da confiança acorde a alma e esta veja, espantada, que recebeu uma dádiva (então imerecida, como sua evolução lhe dirá). E não duvido que estes milagres individuais ocorram até em coisas que afrontem as leis físicas newtonianas, pois o que Deus queria era a confiança do pedinte, e não a facilidade da operação.

Nada obstante, e para ironia de quem escreve um artigo desses, não há como arranjar casos para exemplificar este argumento. Se o articulista disser que nunca recebeu um milagre, o leitor imediatamente pensará que este autor não merece um milagre. Se, ao contrário, confessar que já recebeu um milagre pessoal tão grande que estremeceu Newton em seu caixão, o leitor pensará que menti ou que fui, finalmente, vencido por meu orgulho pessoal. E assim morrem os milagres…

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