Salvação pelas obras é a mesma salvação pela fé

A cristandade reformada põe sempre a fé como passo inicial para a salvação, esquecendo-se de que o ato de crer é uma “obra interior*”, e por isso não tem sentido em se monopolizar a salvação pela fé.

João 3-16 no UKTodos os verbos denotam ações, movimentos e atitudes, configurando algo que deixou uma situação estagnada (ou inércia) e passou a funcionar de algum modo, mesmo que apenas mentalmente. Esta é, a rigor, a definição intrínseca da crença, ou do exercício de crer, em comparação com a descrença, que também é um movimento, só que para o vazio. Crer e descrer são ações de quebra da inércia, só que em direções opostas, como o são todos os verbos. Quando a Escritura diz que “o Verbo” se fez carne (e não o substantivo), aponta imediatamente para o dinamismo de Deus, que se constitui num movimento incessante e nada de estagnação, sem contudo apresentar as falhas ou o cansaço comuns aos seres imperfeitos, cuja movimentação possui erros ou oscilações. Se a Bíblia considerou o movimento de Deus mais importante do que a “substância do Senhor”, tem-se que destaca a obra sobre todas as coisas, mas do que o obreiro.

CS Lewis explicou (tentou explicar aquilo que tem explicação dificílima para a mente humana) que Deus é uma espécie de “Grande Dança”, e a descrição da Grande Dança nas palavras de Dr. ER foi a mais perfeita obra de escrita transmitida pelas mãos de Lewis, e nada pode ser deduzido senão que a Santíssima Trindade é um movimento incessante de amor e bondade que permeia tudo o que existe, seja do ponto de vista objetivo ou subjetivo. Em Deus o fazer é Ele mesmo, e por isso se descobre sinais de suas mãos em todos os recantos da Criação, como dizem os salmistas.

Entretanto e com efeito, entre os cristãos vigora uma desastrosa confusão conceitual, nascida desde a Idade Média, e com a vil consequência de desunir o coração de Deus em dois grupos de seguidores de Cristo, com prejuízo incalculável para a salvação das almas que pretendiam resgatar. E pior, ninguém move uma palha para mudar as coisas, pelo menos no sentido de verificar, “in loco” (nos dicionários e no estudo da Psicologia), a perfeita identicidade das expressões “pela fé” e “pelas obras”, que fariam todo o rebanho caminhar junto, seguindo um só Pastor. Atente para “identicidade”, que é um neologismo fictício para apontar duas coisas idênticas, e não apenas uma mera identificação.

Fazer é o verbo-mãe. Nada existe sem ele. Em Deus ele existe na essência, pois o amor de Deus é multifaciente ou multifazedor, e tudo o que existe além de Deus é obra de seu fazer incansável e ininterrupto. A Bíblia diz que Deus é amor, mas devemos entender isso pelo espírito do Verbo Eterno, deixando a expressão assim escrita: “Deus é amar”, porquanto o substantivo abstrato “amor” deixa o Criador meio estagnado, ao contrário de seu verbo-raiz. Deus é amar mostra imperiosa a obra constante de seu amor à Criação, e chama todas as criaturas a fazer o mesmo, amar, amar, amar.

tesoura_2Isto posto, por que cargas d’água uma parte da cristandade passou a separar a fé do amor e assim dividir o rebanho entre salvos e perdidos, como se na essência das Escrituras houvesse essa distinção entre os seguidores do Nazareno? Pior, como desprezar a ação intrínseca do verbo crer sem lhe atribuir as credenciais das boas obras? Nunca podemos esquecer a figura da tesoura, usada por Lewis, na qual ele explica que uma das lâminas é a fé, e a outra as boas obras (sem uma das lâminas, a tesoura para nada presta!). São Tiago chega mesmo a dizer que ninguém é justificado diante de Deus apenas por crer, mas por ter praticado boas obras (Tg 2,24). Assim, urge estudarmos agora como a boa obra da fé se faz no interior de cada alma, com auxílio da Teologia Lewisiana.

Sendo o ser humano uma trindade de corpo, mente e alma, deve-se entender que a fé nasce de um exercício de boa vontade da alma em confiar naquilo que o corpo não pôde provar verdadeiro, e assim, “meio cegamente”, trabalha em função daquilo que não tem certeza. Ora, isto, a rigor, é uma tremenda obra interior, ou é um fenômeno que exige uma portentosa mão-de-obra psicológica, enquanto a Razão não vê motivo algum para crer em algo, e precisará ser convencida de que vale a pena “apostar” no escuro e receber de volta, supostamente, alguma “recompensa” por tal confiança. E este tal fenômeno pode às vezes até ocorrer com rapidez tal que a Razão nem percebe o longo caminho que trilhou até confiar no escuro… Mas as estatísticas dizem que na maioria das vezes o final deste caminho é a rejeição, e isto explica porque há tanta descrença neste mundo. São Tomé é a bola da vez, e como ele foi um discípulo do próprio Autor da fé, não é de admirar que o mundo inteiro imite São Tomé e tenha muita dificuldade de crer naquilo que não se provou, conforme pensa o ceticismo.

A mente trabalha coletando dados. Os dados não estão guardados numa gavetinha iluminada, com numeração e data de estoque. Eles são meros bits de eletricidade neuronal, surgidos a partir de sinapses nas operações internas do cérebro, com sistema mnemônico de aderência para garantir perenidade. O local e a identificação do bit só o subconsciente conhece e só ele é capaz de resgatar para a resposta respectiva, contando com a “amizade” da consciência (como uma parte da mente é invisível e imorredoura, chamada alma, a gravação do bit também é eterna, jamais se perdendo na contabilidade divina e podendo ser alegada a posteriori).

Para os serviços de captação, interpretação, gravação e resgate do dado, a mente trabalha dobrado, mas sem que o consciente fique necessariamente ocupado e cansado com esta tarefa, ou bloqueando a presencialização do indivíduo ao mundo exterior. É como a gravação automática de atualizações de software, que quase sempre acontecem em paralelo ou subliminarmente, enquanto a memória principal opera as tarefas comandadas pelo operador do teclado. Todavia e contudo, é um conjunto de tarefas até certo ponto pesadas, que o conjunto da mente tem como missão a executar e a desempenha naturalmente, pela programação prévia agendada pelo código genético e mais anteriormente pelo próprio Criador, quando projetou o funcionamento da mente humana.

Jesus pós-ressurreiçãoEm termos práticos, isso seria: (1) a mente toma contato com a realidade, e esta lhe apresenta o apelo de Cristo, pedindo àquela alma confiança nas instruções dEle, arrependimento para acertar na vida e para enfrentar a morte, até a chegada ao Paraíso; (2) ouvindo o apelo, o dado percorre todo o canal auditivo e chega ao cérebro; (3) este distingue o apelo e o interpreta como sendo benigno, porque vem de Cristo (isto porque ele já tinha o dado da bondade de Deus e por isso pôde aceitar receber o dado sem medo); (4) após ouvir e interpretar, o dado é levado à sede da vontade e retorna com uma livre decisão tomada a respeito, que pode ser pura ou entremeada de mini-vontades dependentes dos vícios antigos que ela tinha, e assim perde força e pode prejudicar o resultado; (5) a alma refaz o estado consciente com o novo dado e o incorpora à sua vida, podendo agir com mais ou menos influência dele no dia a dia, dependendo do grau de pureza aplicado à decisão. Estes 5 pontos resumem bem o ocorrido, mas não passam de um resumo, possuindo as falhas típicas de uma viagem a um país desconhecido sem mapa e sem guia.

Todavia, para o presente argumento, este resumo ilustra bem o quanto de esforço e operação é necessário para que a fé se constitua naquilo que os cristãos reformados entendem por fé, e deixa a sensação de que neste específico particular (neste justo dado vital), eles não fizeram uma boa dedução nem tiraram uma boa conclusão daquilo que os primeiros reformadores intuíram. Porquanto advogaram acerca da fé podando-a de toda as suas ramificações espirituais, necessárias para que a operação da confiança interior se robusteça para seguir os passos de Jesus, cujo seguimento começa por um apelo incômodo, a saber, o abandono dos vícios (pecados) que a alma tanto aprecia, iludida pelos prazeres deles extraídos e usufruídos.

Vê-se então que para o simples ato de crer, todo um “inventário” (uma parafernália) de tarefas é requerido interiormente, tanto ao nível dos ouvidos e do cérebro, quanto ao nível da mente, do subconsciente, da vontade e da alma eterna. Não existe, pois, um ato mágico único, instantâneo, no qual uma alma dê um SIM a Deus e isto mude tudo num segundo, como se todo o passado individual deixasse de existir e jamais tivesse “cativado” aquela alma, com hábitos aprazíveis e cômodos, regados à alegria ilusória da vida, ou pior, ao cansaço e à preguiça, que também viciam.

Cartaz Camp Fraternidade 95Logo, dizer que a fé não é uma obra é um erro técnico colossal, porque além de ser um conjunto complexo de tarefas interiores, trata-se de uma boa obra indispensável, salvífica ao extremo, e única a iniciar o indivíduo na lavagem interior que pode conduzi-lo a amar uma vida diferente daquela que ele já vivia, “feliz e realizado”. Pior, é uma “mini-obra” inserida num oceano de boas obras que tanto antecedem quanto procedem a decisão de confiança no apelo de Cristo, e o lado reformado da cristandade só enxerga as boas obras posteriores à decisão, sem associá-las à salvação que ainda se opera no interior de cada alma (veja nossa página chamada “Purismo Lewisiano” NESTE link). Noutras palavras, as almas por eles evangelizadas são instruídas a fazer o bem a partir dali, sem contudo assumi-las como coadjuvantes ou fundantes do processo de salvação que se operou a partir da decisão, esquecendo-se até da boa obra imediatamente anterior à decisão, que é a do arrependimento dos pecados! Entretanto, “o oceano de boas obras” que circunda e inunda a decisão de confiar em Cristo foi muito bem explicado por C.S. Lewis, o qual mostrou que para uma alma se arrepender de seus pecados, é preciso antes ser boa; do contrário, nunca haverá um arrependimento verdadeiro, e assim não haverá salvação. [Para uma alma ser “boa”, ainda será preciso uma obra muito difícil, que talvez só consigamos “completá-la” em nossa vida muito tempo depois (talvez depois de morto, no Purgatório), chamada “perdão ao próximo”: Veja sobre isso uma explicação preciosa NESTE link de nossa autoria com base em Lewis].

Tendo que chegar a ser boa antes da decisão, muitas boas obras foram necessárias até aquele dia, pois para mudar o caráter (que é o que importa para Deus) é preciso forçar a barra com a alma – i.e., quebrar-lhe a teimosia dos maus hábitos assumidos, e impor-lhe bons hábitos a praticar! E isto é uma obra colossal, gigantesca, que exige esforços hercúleos para driblar as insinuações dos antigos vícios (prazeres) e obrigá-la àquilo que ela passa a chamar de “vida chata, enfadonha e sem graça”. Eis aí o nó cego da caminhada, que põe a fé no devido lugar, muito além do que induz a crença reformada.

Finalmente, com tudo isso em mente, chegou a hora de a cristandade se redimir de tão desastrosa concepção e caminhar unida, pelo menos neste mister, tendo como luz a instrução moral de CS Lewis, que nada mais é que a essência do Cristianismo Autêntico, como deveria ser pregado e vivido por todos os cristãos. A própria omissão (talvez voluntária) da disciplina Moral nas pregações das igrejas reformadas já aponta para aquela concepção errônea ou incompleta no seu doutrinamento, com a qual certamente o Reino de Deus tem sofrido revezes dolorosos, perfeitamente evitáveis com uma simples revisão da Moralidade cristã, encontrada tanto nas livrarias católicas quanto protestantes. Se este apelo direto for bem interpretado, talvez tenhamos inaugurado uma nova alvorada no mundo cristão, porta-voz da alvorada eterna.

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(*) – Asterisco no subtítulo: O próprio Jesus afirmou isso quando disse “a obra de Deus é esta: que creiais naquele que por ele foi enviado” (João 6,29).

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