Em que sentido o perdão de Deus “espera” pelo Homem

Sendo a graça de Deus suficiente para resgatar almas e estando estas sujeitas às escaramuças do livre-arbítrio, o complicatório do emaranhado de pecados praticamente faz da Graça algo insuficiente.

Jesus levando ovelha0

Que jamais se pense que Deus não tem poder. Que jamais se perca de vista o poder infinito da Onipotência para fazer qualquer coisa que queira. Que jamais se chegue à blasfêmia e à ingratidão de menosprezar a abrangência e a profundidade do perdão divino. Que jamais se tenha a ideia de que Jesus fez menos do que podia, ou menos do que devia, ou que deu menos de si pela salvação da Humanidade. Nada disso! Tudo o que foi dito acima são fatos irretorquíveis e verdades irrefutáveis, os quais a Humanidade fez e faz bem em confiar, pois se trata da mais séria aposta de Deus em favor de nosso retorno ao seu Reino, com o qual Ele mesmo “sonha feito menino”.

O parágrafo acima perfaz a mais precisa síntese da História do Plano Salvífico de Deus, e é indispensável que o leitor o tenha em vista para continuar lendo este artigo. Porquanto qualquer discurso que tentasse sussurrar o mínimo sinal em contrário seria obviamente um sermão aos peixes, ou pior, uma doutrina de má procedência, com a qual nenhum ouvido cristão concordaria. Então certamente o melhor a fazer é iniciar o argumento com uma pergunta: “por que o perdão de Deus seria insuficiente?”…

Como vimos, por culpa dEle é que não é. Não há qualquer falha nem no perdão e muito menos no coração de Deus. Este é o “x” da questão, sob o qual tudo o mais se sustenta. Portanto e assim sendo, se a misericórdia é perfeita e o coração é infalível, onde estaria a insuficiência do perdão divino? (O leitor verá ao final que há um erro em colocar a palavra “perdão” aqui). Vejamos o que tem a oferecer tão aparente loucura…

Jesus chama PedroTodo perdão é uma via de duas mãos. Todos sabem disso, e nem é preciso ser cristão ou ler a Bíblia para sabê-lo. Se você ofendeu e pediu perdão, o ofendido precisa aceitar seu perdão, senão sua boa ação ficará inválida. Se você foi ofendido e perdoou, seu agressor só terá benefícios de seu perdão se o tiver aceito, e a partir dele olhá-lo com outros olhos. Isto também é uma síntese, e microscópica, da verdade, já que se refere apenas a ofensas relativas a seres humanos. Todavia, se quisermos utilizar o exemplo de modo mais completo, ele certamente fornece um elemento bastante útil para análise do “macroperdão” de Deus. Prossigamos.

Há dois pontos a servir de suporte para esta questão. Um menos e outro mais complicado. Vamos começar com o número 1, o menos complicado.

(1) No centro do Cristianismo, está escrito que “se não perdoarmos os pecados alheios, não seremos perdoados” (Mateus 6,12-15). Aqui está o primeiro nó. Os que defendem a “transuficiência” ou ultrassuficiência da Graça dizem que, após o perdão de Deus, a alma estará salva para sempre, independente de ter ou não perdoado a quem lhe ofendeu no nível pessoal. I.e., que a Graça de Deus dá um perdão tão absoluto que ultrapassa todos os limites e atropelos do Livre-arbítrio, cancelando todas as dívidas do pecador, independente de estar ele em dívida de perdão com o seu próximo ou sob regime de rancor. Ipso facto, a Graça é perfeita e dá o perdão absoluto, mas somente até onde vigora o Livre-arbítrio, que é a Lei Suprema à qual o próprio poder de Deus se submete. Não adianta, pois, o pecador “crer em Jesus”, de todo coração (se é que isto é possível), e não ter saído a perdoar a todos os que ofendeu e também ter aceito o pedido de perdão daqueles que lhe ofenderam. Esta é uma equação “sine qua” e com espírito ordenador, restrita aos rigores de sua existência necessária. Enfim, este primeiro ponto nada antepõe à Graça, e sim interpõe, já que o perdão de Deus e do Homem são ambos faces de uma mesma moeda.

Ave presa em fios(2) No centro da Teologia está escrito que o Homem separou-se de Deus (divorciou-se) por livre e espontânea vontade, agindo deliberadamente na direção oposta à convivência com Deus, e com isso passando a detestar as determinações da vontade do Criador. E pior, a Grande Rebeldia também significou uma queda no sentido ontológico, e todo o ser interior do gênero Humano se desintegrou, ao ponto de nem mesmo o Livre-arbítrio funcionar direito, mal assessorado por uma memória falha e um coração volúvel, sem qualquer firmeza de caráter. E mais, com o passar do tempo, os males assumidos de mansinho e os defeitos parasitários foram se incrustando em vícios cada vez mais entranhados, tal como no conto do passarinho que ao prender seus pés num fiadilho, e ao tentar safar-se dele, cada vez mais enovelava-se, terminando com as asas e todo o corpo aprisionado e paralisado. O leitor é convidado a assistir o vídeo, recentemente publicado no Youtube, chamado: “Erro crasso no entendimento do perdão de Deus”.

E esta barafunda toda tinha e tem a mesma complicação na situação inversa, ou seja, uma vez enovelado nela, o caminho de volta – até ficar totalmente livre – requer todo um “desnovelamento” complexo, o qual necessita não apenas de uma alta força exterior (que Deus oferece, porém espera sem ação se a alma não quiser a ajuda dEle), mas de uma alta força de vontade, vinda de um coração volúvel e já estragado pelo longo tempo do vício e os defeitos da memória! No conto do passarinho, a avezinha só conseguiu sair depois de perder todas as penas e um dos olhos, além de adquirir uma pele dolorida e cheia de lascas sangrentas. Eis aí a descrição daquilo que em teologia é conhecido como “o complicatório da perdição” [No paralelo dos evangelhos, o complicatório que traz as feridas e as dores do resgate pode ser visto na declaração de Jesus: “Quem quiser ser meu discípulo, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me” (Mt 16,24)].

promessaIsto posto, e com isto em mente, a história da salvação adquire ares de saga dantesca de heroísmo mitológico, pois termina por contar (ou conta o que jamais termina) a lenda verdadeira de um Deus que morre em dor extrema por aqueles que O detestam, salva uns poucos que quebram sua própria surdez voluntária e vê a maioria morrer a segunda morte (a morte da rebeldia reassumida) sem que nada possa ser feito porque, tendo feito tudo, percebe que tudo foi em vão. Isto explica o mito verdadeiro dos anões que chegaram ao Paraíso e, estando salvos, acabaram desgostosos e detestando tudo aquilo que o Paraíso oferece de melhor para o prazer de qualquer alma sadia. É este o quadro geral que deixa a mensagem final do mestre CS Lewis tão pungente, pois reconstrói a visão perfeita do longo, difícil e tenebroso caminho de volta a Deus, que a maioria esmagadora da Humanidade prefere interromper ou nem entrar (este episódio faz parte do último livro das ‘Crônicas de Nárnia”, chamado de “A Última Batalha”).

Finalmente, a alegação de “transuficiência” ou ultrassuficiência da Graça, pregada pelas igrejas reformadas, provavelmente não passa de um erro de interpretação da mente de Lutero e/ou de uma estratégia de marketing proselitista, visando “facilitar” o caminho de adesão aos seus apriscos, já que é muito mais fácil ajuntar milhões de seguidores – amantes da indolência e do prazer fácil – com um apelo barato (“crê no Senhor Jesus e serás salvo”), do que correr o risco de ver sua instituição naufragar na inanição, com as poucas ovelhas dispostas a pastar no seco e duro terreno da Verdade.

 

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