(Trecho de um livro que a mente ainda não parturiu)
– Sim, estou feliz por ter sido criado, mas vejo muita coisa no mundo que não entendo e detesto, sobretudo a injustiça cósmica…
– O que você chama de injustiça cósmica?
– Saber que alguém que se diz “PAI infinito” irá condenar almas tão finitas a penas infernais, inclusive antecipadas na terra.
– Nunca condenei, condeno ou condenarei ninguém a pena alguma! Até porque a auto-condenação da angústia e da depressão já fazem um estrago tão grande na alma que os homens maus (conquanto estejam lutando contra sua própria felicidade) até chegam a suscitar piedade em meu coração, pois eu os criei para serem felizes.
– Então, quer dizer que até mesmo os estupradores e pedófilos ficarão livres?
– Claro que não! Eles já estão presos em si mesmos num inferno astral terrível, e só possuem uma única chance de sobreviver, e a depender de um instante de sono de sua maldade, quando por uma frestinha a luz poderia entrar. Afora isso, não há pior prisão do que esta para quem já perdeu toda a liberdade. – Mas… a propósito, você não está pensando que se distingue tanto deles, não é?…
– Não e sim. Conheço bem a doutrina do pecado e sei das carapuças incômodas que habitam no meio de sua dialética. Mas pelo menos não tenho nenhum autoexame a apontar para o lado mau. Mas responda, Senhor: E o mal que os pedófilos fizeram aos inocentes?
– Está escrito: “Que mal me pode fazer o homem?”; todos os inocentes foram criados com um dispositivo de proteção contra a dor da alma, e sua dor física é muito mais aparente do que real; com efeito, a sua parte real foi construída apenas para tentar gerar nos criminosos pelo menos o cheiro do sentimento de piedade (não por causa da vítima, mas sim para tentar fazê-los refletir um mínimo que seja sobre seus atos, e assim possibilitar-lhes a cura; pois a piedade foi o grande bem que ele perdeu, a qual é a geradora de todas as virtudes). Logo, nenhum pecado é tão grave que não possa ser perdoado, e nenhuma santidade é tão pura que não possa ser tentada.
– Mas a pedofilia não ofende ao Senhor e desperta a Sua ira?
– Sim, mas isto não tem nada a ver com a dor da vítima (que pode ser traduzida como um INCÔMODO DESPERTADOR DA ALMA, como afinal são todos os sofrimentos para este mundo surdo!), a qual pode até ser ruim, mas nunca irá além do que se pode suportar, como disse meu filho Paulo, e no final o maior ofendido sou eu mesmo.
– Como o Infinito Coração pode se ofender com vermes tão microscópicos como nós?
– Os vermes cometeram um pecado gravíssimo!
– O que poderia ser tão grave vindo de vermes tão insignificantes?
– Uma mente humana jamais seria capaz de entender um desejo que aniquilasse a si mesmo e com isso a levasse a rejeitar a única coisa capaz de fazê-la feliz. É como se os homens pudessem provocar um suicídio em sua própria alma (rejeitar a mim é suicídio). Todavia, como suas almas são imortais, eles viram mortos vivos e cegos, soterrados sobre toneladas de maldades decorrentes daquele primeiro ódio que me rejeitou. É isto o que eu chamo de inferno, ou é este o único inferno que existe.
– Puxa! E somos mesmos capazes disso? Nós pobres vermes?
– Sim. Em termos mais práticos, eu os criei com poderes tais que o próprio universo poderia ser “redesenhado e reconstruído” pela telecinese transcendental de uma mente maligna, e por isso eles foram capazes de um ato desencadeador do mais sério risco corrido pela Criação.
– Mas esse risco ofenderia o Senhor, que tem coração infinito?
– Sim, e justamente por isso. Um coração infinito está presente em tudo, inclusive nas menores criaturinhas do cosmos, e por isso sofre infinitamente pelas dores e injustiças sofridas por essas criaturas (que não pediram para nascer e por isso não merecem sofrer de forma alguma).
– Então, se entendi direito, a rejeição ao Senhor leva a um ódio interior que se externaliza em atitude de rejeição geral pelas coisas que lhe pertencem, culminando pelo desejo de exterminar todas as formas de vida que recebem seu Amor e com ele se satisfazem! É isso?
– Sim. Você entendeu direitinho. É isso mesmo. O ciúme não é apenas físico; pelo contrário, nasce na alma e dela se alimenta.
– Okay; entendi sim. Agora estou vendo melhor a extensão do nosso mal. Mas deixe perguntar de novo: a morte não é um castigo muito duro?
– Você cria palavras para coisas que não existem.
– O que não existe?
– Morte, castigo…
– Mas todo dia morre gente a 3 por 4, e muitos sofrendo horrores!
– Todo dia gente viaja a 3 por 4 e muitos sofrendo alguma coisa, por sua própria rebeldia interior ao Bem que lhe quer salvar. Os que sentem uma dor maior têm a sua viagem antecipada para evitar prejuízos à alma, cujos ouvidos têm de estar íntegros para a longa conversa do Hades. Era isto que você deveria ter dito.
– Então morrer é viajar? E toda a dor é apenas algum incômodo didático-medicinal?
– Sim. Mas sei que minhas palavras sempre serão insuficientes, pois o pior prejuízo da rebeldia da Queda foi justamente incitar o coração à desconfiança de Deus, e, a partir dela, à desconfiança generalizada.
– Mas onde está a didática medicinal disto tudo?
– A lição da fragilidade da vida está todo tempo esbofeteando-lhes o rosto, e ao contemplar sua incorrigível fragilidade, a cura começa a imiscuir-se pela humildade que se impõe.
– E há mais alguma “vantagem” didática envolvida?
– Sim. Quero ver aonde eles vão parar! Quero ver como é que eles vão se sair quando, quase no fim do mundo, perceberem que todos os esforços e caminhadas em busca da satisfação de seus desejos, termina num beco sem saída, onde precisam largar alguma coisa em que se viciaram para salvar a própria pele. É exatamente como o ladrão que, tendo conseguido botar nas costas um saco grande cheio de ouro e nas mãos um saquinho pequeno, se vê obrigado a largar o sacão para poder correr na chegada da polícia. E pode decorar: é sempre assim: o enorme bem que quero lhe dar precisa da devolução do bem menor que você já curtiu, ou então cada perfeição oferecida à sua alma necessita da retirada voluntária de uma imperfeição com a qual ela já se viciou. Se você tiver aprendido esta lição, quase posso dizer que já não precisa aprender mais nada. Pelo menos neste mundo.