Os três modos do ser humano vir a ser

A consolidação da memória, a identificação do eu-pessoal até o limite do sonhar e o uso da liberdade na escolha do Bem formam a única pedra fundamental em que um primata superior pode vir a tornar-se um Homem, na exata expressão da vontade de Deus.

Corpo energéticoNo livro “De pai para filho: Elogio da Tradição”, Miguel de Unamuno, escritor e educador espanhol (1864 a 1936), certa vez escreveu algo aparentemente simples, mas que encerrava uma verdade que, contra todos os pseudo-otimismos da Psicologia moderna, vem apresentar indícios de uma fragilidade tal naquilo que chegou a ser o ser humano, que mente alguma de homem algum poderia resistir. Ele disse, sem qualquer medo de resumos populistas, que “a memória está na base da personalidade individual, assim como a tradição está na base da personalidade coletiva”. Aqui está sua exatidão conclusiva: a memória é tudo, e está na base da própria condição de SER, de um ser capaz de identificar-se a si mesmo como um “eu” pessoal e distinto de qualquer outro, e sem a qual o próprio Deus perderia o sentido (pelo menos perderia a possibilidade de ser reconhecido e assim, desaparecer perante suas criaturas).

Chesterton em coresUm outro escritor genial, o católico G.K. Chesterton, também deu a sua grande contribuição ao nosso tema, quando um dia fez uma pergunta contundente: “Quem não considera os sonhos misteriosos e não sente que eles se situam no limite do ser?” (“O Homem Eterno”, página 49, 1º parágrafo, cap. 2, ‘Catedráticos e homens pré-históricos’). Suas palavras foram tão profundas e inquietantes que a Fundação Americana da Sociedade Chesterton, sem medo de errar, chegou a apontar essa frase como O Limite do próprio Chesterton, um escritor virtualmente ilimitado. Sem rodeios e elogios à parte, a experiência de sentir, ver ou chegar aos limites de seu próprio SER perfaz, inexoravelmente, a parte mais divina da equação da criação humana, e talvez só Deus nos fará conhecer até onde ela chegou na intuição/inspiração de Chesterton, muito além do que propuseram inúmeros outros gênios estudiosos da psique e dos sonhos.

CS Lewis, nosso mestre maior e paraninfo desta Escola, jamais deixou de situar o Livre-arbítrio no próprio cerne da existência da alma, apresentando uma teologia cuja coerência dependia exclusivamente de se encontrar, no planeta Terra, criaturas completamente livres, tanto para agir bem quanto para agir mal. Jamais admitindo dar razão a quem quer que pensasse que Deus nos criou com liberdade espiritual limitada (Dr. Waldo Vieira que o diga!), Lewis mostrou que toda a teologia cairia por terra com a teoria de que na Terra só há liberdade para agir bem, e que o que chamamos de mal não é mal pela ótica divina. Caem por terra pobres buscadores da verdade como Calvino e seus seguidores, os quais nem sequer admitiam o Livre-arbítrio simples (aquele em que só se pode praticar o bem) de seres autômatos, ensinando uma Criação divina completamente sem graça e sem a Graça!

Eis aí resumidos os três modos do ser humano vir a ser, objeto do título deste artigo, e eles ainda serão objeto de outras considerações. Assim sendo, vejamos alguns dados paralelos em adição aos três parágrafos anteriores, ajudando o leitor a identificar outras vertentes do argumento. O que será dito agora não segue necessariamente a ordem dos três primeiros parágrafos.

Imagem ilustrativa dos sinais elétricos no cérebroPor exemplo: Existem diversos tipos de “demência cerebral”, que a Medicina estuda, mas importa muito mais entender aquilo que poderíamos chamar de “limitações mentais naturais” (ou “fendas” microscópicas na fisiologia do cérebro, que o impedem de ter domínio pleno da atividade que está a executar), as quais terminam por introduzir um elemento decisivo na operação das falhas de comportamento mais comuns no dia-a-dia de muita gente. Refiro-me a outras provas de limitação mental promovidas por determinados esquecimentos, leves ou desastrosos, que provam que o cérebro NÃO VÊ uma parte da tarefa (geralmente a parte final) e dá o comando de encerramento equivocadamente, como se a tarefa já tivesse se encerrado naquele ponto onde ainda faltam complementos ao seu perfeito funcionamento. Ilustram este caso pessoas que fazem todas as tarefas de culinária (por exemplo, fazendo uma feijoada), mas ao final esquecem de lavar as panelas, os pratos, ou pior, esquecem o fogo aceso ou coisa que o valha. Porém este exemplo é tão drástico que não funcionará bem. Pensemos então naquele tipo de pessoa que faz as coisas a tempo, mas sempre esquece de fechar alguma coisa (por exemplo: se entra numa sala, esquece de apagar as luzes ao sair; se abre um móvel, esquece de fechar sua portinhola; se abre uma lata de leite ninho, se esquece de fechar bem a tampa; se toma banho, esquece de dependurar a toalha bem aberta para secar, etc.). Ora, o que quero dizer é que isto não é um mero “esquecimento”: é uma “limitação” do cérebro que dá um comando errado, dizendo que a tarefa já terminou, quando ainda lhe faltam partes fundamentais, ou lhe falta o seu final, igualmente necessário (muitas vezes prejudicando as pessoas que irão estar na cena momentos depois). Isto que chamo de prejuízo também foi identificado como INIMIZADE INTERIOR, e o leitor pode confirmar isto NESTE link. O drama das falhas ou fendas na memória é tão sério que foi preciso o próprio Deus intervir com uma missão extra para o seu próprio Espírito, a qual sabemos existir pela palavra de Jesus: “Ele vos enviará o Consolador, e este vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito” (João 14,26). É isso. Ficou claro? Vamos em frente.

Quando GK Chesterton faz a inquietante pergunta “quem não considera os sonhos misteriosos e não sente que eles se situam no limite do ser?”, o mestre e filósofo cristão está colocando cada um de nós diante de um grande universo, no qual a única possibilidade de visualização é um sentido da visão límpido sobre si mesmo, sendo capaz de identificar, no dia-a-dia, tudo aquilo que é coisa externa, a alteridade distinta do outro, coisa só possível com a mente funcionando a contento (sem demências). No estado normal, o indivíduo então faz uma viagem consciencial em torno de si mesmo, sendo capaz de vislumbrar onde se situa ou que partes do visível faz parte do visualizado. A finalidade dos sonhos se mostra inteira aqui, muito além do que intuíram todos os estudiosos da psique, e assim as extremidades ontológicas de cada alma se circunscrevem desde o interior do “eu” mais estrito (o aglomerado de átomos do qual Deus formou um corpo humano particular), até o “eu-periférico”, ou até onde chega aquilo que ainda é parte de si, e ainda indefinido para nossa consciência incipiente. Lembro agora que CS Lewis um dia escreveu que o ser humano, conquanto sinta intimamente ir além de meros “carne e ossos”, ultrapassa em muito o misterioso “saber-sentir-pensar” de Ernesto Bono, apresentando-se como figuras enormes e translúcidas à beira da existência, como gigantescos bonecos transparentes a olhar as cenas deste mundo, como a esperar o desencarne e a “re-junção” da verdadeira alma com a mente criada e amoldada ao sentir físico da História terrestre. É tão complexa aquela sua descrição que ninguém sabe como encontrar palavras, na linguagem humana, para que nossa mente possa ter, ainda em vida, a mais diminuta consciência do que Lewis explicou. Lewis é gênio.

Eis que estou à portaQuando a Bíblia fala em “negligenciarmos tão grande salvação”, vai muito mais além do que a mera perda da crença num determinado conjunto de afirmações, e até muito além da perda de uma situação de amizade com Deus; porquanto ‘a perda’ é algo muito mais decisivo e definitivo para a alma humana, constituindo na verdade a condição de existência do ser, ou a condição do ser chegar a ser um ser consciente de existir perante outras coisas existentes. Isto explica porque Jesus chamou a conversão de “Novo Nascimento”, e Paulo falou de ser uma nova criatura; porque na verdade, quando Deus nos salva, está na realidade ‘re-criando’ nosso ser, ou nos fazendo voltar a existir após o drama da Queda, que foi também o drama do voltar a não-ser, ou do ser que extingue a própria existência, como num “suicídio da alma”! Eis porque o que mais encontramos neste mundo são criaturas mal-formadas, por assim dizer (não no sentido físico), ou criaturas que ainda nem chegaram a constituir seu próprio ser, estando assim ora à espera do não-mais-ser ou de conseguir finalmente SER de verdade, naquilo que o livro de Hebreus chamou de “tão grande salvação” (i.e., já que além de salvar, Jesus também RECRIA nossa pessoa e nos dá nova autoconsciência de nós mesmos, chamando-nos à sua própria vida, a vida ZOE, única que restaura e reintegra a alma que foi perdida no Paraíso adâmico).

Finalmente, “os três modos do ser humano vir a ser” podem ser uma equação perfeita de entendimento do mistério da criação, mas também podem ser apenas a ponta do iceberg do grande quebra-cabeças do universo, estando ainda longe de perfazer aquilo que neste mundo apenas visualizamos com dificuldade, a saber, nós mesmos. O mistério do ser é tão grandioso que simplesmente nos permite até deixar de fora tudo o mais que chega ao nosso conhecimento, mesmo das coisas que Deus comunicou e encaminhou para nossa salvação. Porquanto ser salvo por Deus é antes de tudo SER, porque Deus antes de ser Deus, é “apenas” SER. Só que Ele é tudo, e isto significa que sua vastidão abarca tudo o que um ser completo precisa para existir, e nós apenas tateamos inseguros no escuro do que ainda não somos, na esperança de um dia virmos a claridade de Deus, e com ela virmos a nós mesmos, i.e., virmos a ser.

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