Para crer em Jesus é preciso crer num milagre anterior de logística

Pregar ou discutir sobre Jesus não deveria ser algo tão comum quanto se vê hoje em dia, pois toda a crença em Cristo depende de se ter como verdadeiras algumas afirmações decisivas do Novo Testamento.

Luz do RessurretoDe que adianta dizer que a Bíblia é Palavra de Deus quando alguém pode acreditar em Deus mas jamais crer que Ele “tenha escrito” um livro para a Humanidade? Ou como fazer a Humanidade acreditar nas instruções bíblicas quando a Ciência tem sérias dúvidas quanto à autenticidade dos registros? Logo, aquilo que parece uma simples negação da verdade pode conter uma lógica racional e eficaz contra a alegação cristã de autenticidade das Escrituras.

Porquanto e com efeito, a discussão e sobretudo a pregação das igrejas deveria se pautar por uma espécie de iniciação doutrinal, na qual a única preocupação (a primeira, sine qua), seria a de levantar argumentos coerentes que demonstrassem a lógica da Onipotência, na qual a missão de Deus é muito mais importante do que qualquer palavra que comunicasse o plano de salvação, e que este independe do que a Humanidade tenha conseguido “filtrar” das Escrituras ou de suas inúmeras interpretações. Neste sentido, crer que a Bíblia é divina seria de somenos importância, desde que o interlocutor se convencesse, racionalmente, de que seria bastante lógico a Onipotência comunicar uma verdade à Humanidade, mesmo que tivesse que contar com uma linguagem tosca e limitada como a nossa (de todos os idiomas da Terra), e mesmo que todas as comunicações oriundas da mente de Deus tivessem que passar pela hermenêutica humana.

Logo, qualquer crente é obrigado a reconhecer que o conjunto completo de doutrinas cristãs fica sempre na dependência da crença em 3 ou 4 versículos cruciais de logística da comunicação, dos quais sempre dependeria a validade do restante contido na Palavra de Deus. Para o leitor visualizar melhor o argumento, os versículos logísticos seriam os seguintes: (1) “Ele vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito” (João 14,26); (2) “Nenhuma palavra das Escrituras provém de interpretação particular, mas de homens santos de Deus [e jamais de mentirosos]” (II Pedro 1,20); (3) “Estes porém foram escritos para que creiais no nome do Unigênito de Deus” (I João 5,13); Etc. E agora veja o leitor as implicações decorrentes destes versos e as ideias que desembocam neles.

  1. Ao dizer “ELE vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito”, a Bíblia faz um colossal resumo do que é exigido da fé aqui, pois o texto implica em acreditar que foi o próprio Deus, o Espírito Santo (outra crença difícil), quem se imiscuiu na mente dos escritores canônicos e ali inscreveu, a ferro e a fogo, as expressões necessárias à comunicação do plano de salvação da Humanidade; e pior, isso de modo exclusivo (segundo os crentes que defendem a inviolabilidade e a irrevogabilidade das Escrituras) para algumas poucas pessoas e a mais ninguém, numa estranha confiança de Deus num determinado grupinho de escribas. Pode-se, tranquilamente, perguntar por que cargas d’água Deus escolheu tal grupinho e não muito mais gente, ou por que não espalhou pelo mundo um número muito maior de “avisos do Caminho” (livros) para que muita gente nem precisasse procurar por uma única “seta indicativa” chamada Bíblia. Pior, todo crente com certo nível de instrução sabe que os evangelhos (como muitos outros livros da Bíblia) não foram escritos pelos apóstolos, e sim por escribas escolhidos pelas comunidades fundadas pelos apóstolos; e tais escritos foram produto de lembranças “aproximadas” e geralmente dispersas de seres humanos, cuja memória é uma das coisas mais falhas da mente após a Queda (tão falha que foi preciso Jesus criar um sistema no qual o próprio Deus é quem nos faria lembrar de alguma coisa…) – E chegamos ao segundo versículo.

  2. Ao dizer que “Nenhuma palavra das Escrituras provém de interpretação particular, mas de homens santos de Deus [e jamais de mentirosos]”, a Bíblia (Pedro) volta ao tema de um grupo particular de homens inspirados por Deus, a rigor, selecionados a dedo, independente de haver no mundo muita gente que mereceria a confiança de Deus. Aliás, ao chamá-los de “santos”, a Bíblia faz a seleção moral dos escribas, e nós sabemos (por ela mesma) que NENHUM homem merece confiança (“maldito o homem que confia no homem” – Jr 17,5) e que “todo homem é mentiroso” (Romanos 2,4 e 11). Afinal, se o critério é a moral e a ética, então isto significa que os erros de comunicação e de memória, que ocorrem independente de ser santo ou profano o escriba, ainda estarão incidindo sobre os fatos comunicados, e por isso a expressão petrina a rigor NÃO QUEBRA a Lógica dos ateus nem resolve o problema. Logo, o raciocínio ficaria assim: “para crer em Deus, eu preciso crer que Ele comunicou alguma coisa à Humanidade, e que esta Comunicação foi tão diretamente auxiliada ‘por Suas próprias mãos’, que Ele ESCOLHEU pessoas ‘a dedo’, e pessoas cujos pecados jamais interferiram na sua obra e nem na sua memória, e onde as próprias deficiências ‘naturais’ da Comunicação foram corrigidas diretamente pelo Espírito de Deus, que eu nem sei se tem espírito, porque nem sei se existe um Deus”. Pior, isto tudo sem levar em conta que as memórias dos escribas foram coisas naturalmente “mal” resgatadas após 30, 40 ou 60 anos depois da ocorrência dos fatos, e por isso Deus precisou especificar e detalhar (como nas minúcias de um relato onde uma mulher “invisível” tocou a orla das vestes de Jesus) cada relato como se emprestasse Seus próprios olhos e memória àqueles a quem caberia contar o que aconteceu. Assim, aqui mais uma vez se pode perguntar por que Deus teria sido assim tão seletivo, quando a própria Bíblia diz que Ele não faz acepção de pessoas e por isso qualquer um, a rigor, poderia ter a sua vida e memória lavada para comunicar a Verdade.

  3. “Estes porém foram escritos para que creiais no nome do Unigênito de Deus”. Quando João disse isso, i.e., quando o seu escriba se lembrou do que João pediu para a sua comunidade contar, já havia na memória do escriba tanta dúvida quanto às demais vertentes e implicações das várias lembranças importantes a repassar, que ele aproveitou e registrou este “ponto final”, como se estivesse dizendo: “não hesitem, pois o que estamos revelando é aquilo que salva e é aquilo que Deus queria que fosse registrado”. Não é à-toa que o último verso do Evangelho deste mesmo escriba de João diz que “se fôssemos registrar tudo aquilo que Jesus fez, nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos”. E por que diz isso? Porque ele simplesmente não conseguia se lembrar de mais nada e acreditava (lá vem a fé de novo) que aquilo que já estava escrito era suficiente para encaminhar as almas à salvação, embora deixando ali uma enorme lacuna de ensino (que era pontuar a moralidade como instrumento número 1 de salvação, pois é por ela que as almas podem chegar ao arrependimento, sem o qual não há salvação!). Isto basta.

Está claro por que existe ateísmo no mundo. Os crentes não se dão conta do quanto é difícil crer, pois as bases das Escrituras oscilam entre as próprias lógicas por ela oferecidas, ou são tremeluzentes até para quem tem uma crença bastante sólida e antiga. Somente um escritor como CS Lewis, cujas memórias estavam vivas na época dos acontecimentos da vida dele, e recebendo de Deus a mesma inspiração dada aos escribas, poderia entregar um Evangelho à altura do argumento mais lógicos dos ateus, e dar resposta a questões que as Escrituras não deram, as quais foram silenciadas na expressão do último versículo de João (Jo 21,25).

Outrossim, toda a dificuldade de crer ainda é ampliada pela própria fragilidade da fé, pois por ser um sentimento (“e as emoções vão e vêm”, segundo Lewis) assentado sobre um coração quase sempre de pedra (por isso somos rebeldes pela distância da moralidade em que quase sempre nos colocamos), se Deus fosse esperar salvar a Humanidade pela simples fé, certamente não haveria lugar no inferno para tanta gente!

Logo, a salvação não pode contar somente com a Bíblia, e muito menos com a crença exclusiva nela. Isto abre um infinito horizonte de eventos a discutir. Senão vejamos.

Era preciso que o Homem tivesse algo mais que a fé, e também Deus tivesse algo mais que o perdão para aceitar almas humanas no Paraíso. Isto é bíblico? Sim, é. E não poderia deixar de ser, senão não haveria plano algum de salvação, e todo o universo se perderia num imenso absurdo (i)lógico. Todavia, como é fato que Deus existe, então a salvação não poderia depender de coisas frágeis – como as crenças em si – e nem de coisas duvidosas como os registros transmitidos via linguagem humana – como a Bíblia –, incapazes de iluminar e traduzir o universo multidimensional de Deus (neste momento seria urgente ao leitor ver toda esta dificuldade de Comunicação no texto de Lewis chamado “Transposição”). Logo, o que há além que garante a salvação humana?

O Amor. Chama-se Ágape, é eterno e não sofre qualquer deficiência de nossas precariedades. Então, como ele opera? O Amor precisa operar nas duas frentes do problema. Em Deus ou de Deus (fácil) e no ou do Homem (dificílimo).

Livro das fadasDe Deus: O Criador obviamente não ficaria na dependência de alguma revelação escrita e reproduzida sob as precárias condições da comunicação terrestre. Ele não ficaria a mercê de um livro feito de papel e tinta e de ouvidos propensos à surdez voluntária ou física dos nossos ossinhos e labirintos, bem como das intenções nem sempre louváveis de quem sai a pregar a sua visão particular da Revelação. Isto equivale a dizer que o Plano de Salvação independe do que os escribas tiverem lembrado das palavras do Mestre, e muito menos das interpretações que os bons e maus pregadores vêm fazendo ao longo dos séculos. Então, agora, nós podemos apostar com segurança que seremos salvos de qualquer maneira, independente de termos lido ou crido nas Escrituras, e de termos ouvido igrejas pregando suas crenças particulares. A salvação vai depender, sim, de outros fatores…. E aqui entra a parte…

Do Homem: Todo cristão sabe que não há salvação sem arrependimento. Sabe que o arrependimento é o único caminho, e não Cristo (Cristo é a avenida pela qual correm todos os caminhos ensejados pela misericórdia). Para se arrepender é necessário SER BOM, como explicou Lewis em “Mere Christianity”. Para ser bom, é necessário fazer com que a alma humana, viciada na prática da liberdade irresponsável, conceda se enveredar pelo vício oposto, i.e., perder a pseudo-liberdade e assumir regras organizadas de viver e conviver. Pior, o processo é lento, longo e até doloroso nos primeiros anos, e a maioria opta – entre saber que não é bom e saber que o prazer é bom – por voltar à lama e ao próprio vômito, desistindo daquilo que acaba chamando de “utopia do padrão divino”. Com efeito, em todas essas etapas pode crer em Jesus e nada alterará, a não ser que se arrependa, mas só pode se arrepender se alojar a bondade de Deus em si mesmo. Finalmente, se não conseguir se arrepender daquilo que nem considera pecado, só se salvará se enxergar a luz no fim do túnel e segui-la, até onde der na vista [para ampliar o que foi disto neste parágrafo, favor continuar a leitura NESTE link].

Agora o leitor pode talvez entender porque a salvação é um Milagre. Ou melhor, porque é um milagre tão colossal, maior que o universo. Porém, seja lá como tenha entendido tal azáfama pela ótica deturpada que já lhe legaram, descobrirá também que quanto mais difícil é a salvação, maior será o Amor de Deus envolvido no processo. Porquanto salvar a meras criaturas pecadoras porque elas acreditaram num mero amontoado de papel, escrito às custas de memórias precárias de indivíduos escolhidos para assinar por outrem, seria tosco demais para caracterizar a nobreza inefável do sacrifício de Cristo, que iria buscar qualquer alma em qualquer lugar, mesmo que para isso tivesse que descer aos infernos.

Será que uma alma moderna vai entender o que acabou de ler? Certamente não entenderá, pois a mesma dificuldade de comunicação que Deus encontrou para inspirar homens a serem escribas de outros, é a mesma que ocorre agora, no escriba destas linhas.

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